Quem
protege os protetores? A violação aos direitos dos promotores de direitos
Cláudio
Pinheiro Gomes - Campos dos Goytacazes(RJ) - 02/06/2011
Artigo desenvolvido durante a XV Jornada Formativa de Direitos Humanos,
realizada na FABEC/RJ, de 30/05/2011 a 03/06/2011
1. INTRODUÇÃO
Historicamente o policial tem sido usado como instrumento da garantia e
manutenção do poder e dos privilégios nas mãos da elite. Assim como o senhor de
engenho utilizava o capitão do mato para submeter seus escravos, as elites
utilizam o policial como ferramenta para submeter a plebe. Isso acontece ainda
hoje em países capitalistas e socialistas, desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Mas o policial não é o repressor, mas apenas uma ferramenta, e como tal,
pode ser descartada ou substituída quando envelhece ou perde sua utilidade. Às
vezes, por mau uso ou por defeito, a ferramenta torna-se inconveniente e deve
ser destruída.
No caso do Brasil, a Polícia foi trazida de Portugal por D. João VI, e
implantada sob o nome de Intendência Geral de Polícia, com atribuição para
enfrentar problemas de moradia, desabastecimento de água e alimentos, e ainda
para recolher de impostos, reprimir o contrabando e outros crimes, controlar de
presos e combater idéias liberais que, com a abertura dos portos, poderiam
ameaçar os interesses da coroa. Assim é que a “Polícia Joanina” fazia as vezes,
simultaneamente, de Prefeitura, Receita Federal, Polícia e, sobretudo, Guarda
Real.
No contexto atual, a denominada “constituição cidadã” consagrou, em seu
artigo 144, o controle político das instituições policiais, mantendo suas
características de “Guarda Real”. Utilizado pela elite como ferramenta para
reprimir sua própria classe sócio-econômica, mas sem gozar dos privilégios
dessa elite, o policial fica isolado em uma “zona de limbo”: desprestigiado por
seus pares e humilhado pela elite, acaba por constituir um verdadeiro “grupo
vulnerável” que, ao contrário de outros (idosos, mulheres, GLBT, negros, etc)
não contam com qualquer organização que efetivamente se proponha a defender
seus direitos.
O objetivo do presente trabalho é identificar as violações aos direitos
daqueles profissionais que devem, justamente, garantir esses direitos aos
cidadãos, mas que, paradoxalmente, não encontram quem efetivamente lhes defenda
esses mesmos direitos como cidadãos. Os problemas levantados foram
identificados, majoritariamente, com base em depoimentos de alunos das
diferentes instituições de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, no
curso “Saúde ou Doença – de qual lado você está?”, promovido pela SENASP e do
qual o autor é tutor.
2. DESENVOLVIMENTO
Para que a elite pudesse continuar a dispor das instituições policiais e
de seus agentes como uma “ferramenta” destinada a garantir seus privilégios em
detrimento das classes menos favorecidas, seria preciso:
• Escolher os policiais dentre as pessoas do povo, para que possam ser
facilmente descartados;
• Prover baixa remuneração, para que esses profissionais possam, com
mais facilidade, ser comprados quando ameaçarem atuar contra os integrantes das
elites;
• Submeter os policiais e as instituições a uma forte ingerência, tanto
no âmbito interno quanto externo, para os casos em que seus integrantes se
recusarem a dobrar-se diante do poder econômico.
2.1 – Remuneração
A questão salarial é ainda muito mais grave do que se veicula. A
remuneração percebida pelo policial – reconhecidamente defasada – é composta,
em sua grande maioria, de adicionais e gratificações que se perdem quando o
policial, doente ou ferido, se vê obrigado a afastar-se do trabalho.
O percentual dos vencimentos do policial que é composto por
gratificações sofre grande variação entre as instituições e dentro de uma
própria instituição, criando e acentuando distorções salariais. Em geral as
gratificações representam mais de 70% dos vencimentos de um policial. Essas
gratificações são retiradas do policial por motivo de seu afastamento
(licenças, aposentadorias, etc).
Dentro de uma mesma instituição, podemos observar grandes variações em
função da unidade onde o policial é lotado. Como as remoções são comuns e não
precisam ser fundamentadas, o policial acaba se tornando “refém” de sua chefia
imediata. Se quiser gozar férias ou reclamar alguma arbitrariedade poderá
sofrer a denominada “punição geográfica”, sendo deslocado para outra unidade.
Nesse contexto pode ver reduzidos seus vencimentos e ainda ter que arcar com
novos custos de deslocamentos.
2.2 – Saúde
2.2.1 - Saúde Física:
Os policiais são submetidos a diferentes escalas de trabalho, sendo a
24x72 (horas), a mais comum. Nas delegacias de Polícia Civil e nas unidades de
Polícia Militar, o efetivo muitas vezes é insuficiente para atender a demanda,
gerando sobrecarga. O policial é ainda vítima de assédio, tanto por parte dos
superiores, como por parte da própria população, que não compreende o seu
serviço e limitações. O plantão torna-se muito desgastante e o dia subseqüente
parece pouco para o policial reaver suas forças. Após passar um dia inteiro
entre torpor e cochilos sobressaltados, o policial tenta, no segundo dia,
retomar o que sobrou de seus laços familiares e sociais. O tempo é, em geral,
insuficiente para dar-lhes a atenção devida. No terceiro e último dia, o
policial já sofre com a tensão referente à aproximação de mais um plantão
difícil e isso prejudica e por vezes até inviabiliza o seu descanso. Esse
fenômeno é ironicamente chamado de TPP – Tensão Pré Plantão. O segundo dia de
folga, que na prática é o único, muitas vezes é utilizado em atividades de
complementação de renda, na tentativa de suprir necessidades não atendidas por
seus vencimentos. Nessa dinâmica, o policial torna-se sedentário, não dispondo
de tempo e muitas vezes nem de dinheiro para o lazer e atividades físicas.
No ambiente de trabalho, o policial é submetido a um ritmo cada vez mais
intenso de trabalho dispondo, para isso, de mobília e equipamentos que muitas
vezes não oferecem ergonomia. Não por acaso são freqüentes os casos de LER
(Lesões por esforços repetitivos) e problemas de coluna. Como policial trabalha
com as limitações humanas, sofre um grande nível de estresse.
Em alguns locais o policial ainda é submetido a um ambiente insalubre.
Existem delegacias onde o IML ainda é um de seus anexos, em outras, sequer
existe banheiro disponível. Alguns policiais são submetidos ainda a agentes
como poeira, mofo, limo, etc., que podem determinar infecções e graves
problemas respiratórios, e, eventualmente, levar o policial à invalidez e até à
morte.
2.2.2 - Saúde Emocional:
Um aspecto que normalmente provoca grave sofrimento ao policial é o
rompimento de laços familiares e sociais. Esse rompimento é provocado,
basicamente, por três fatores:
a) A discriminação social contra a classe policial, o que acaba
determinando o isolamento dos policiais que, surpreendentemente, acabam por
constituir um verdadeiro grupo vulnerável;
b) O esgotamento físico e mental que impede que o policial participe, em
seus dias de folga, das atividades de lazer junto aos familiares ou amigos.
Muitas vezes os familiares saem para passear enquanto o policial fica em casa
dormindo, recuperando suas forças para o próximo plantão.
c) A instabilidade provocada pelas constantes remoções e mudanças na
rotina de trabalho que, inevitavelmente, refletem negativamente na vida pessoal
e familiar.
Outro aspecto é a perda de afetividade em função do trabalho. Todo
trabalho demanda afetividade, que é o esforço físico, psíquico e emocional
gasto pelo trabalhador a fim de alcançar um resultado. Nesse sentido, o salário
deve se constituir uma compensação pela afetividade empenhada. Sendo o salário
insuficiente, o trabalhador entra em sofrimento. O sofrimento é agravado no
caso das escalas extras: Ora, o trabalho obrigatório não remunerado, outra
natureza jurídica não tem senão a de trabalho escravo.
Um aluno do curso “Saúde ou Doença, de qual lado você está?” fez o
seguinte relato, referindo-se às situações estressantes que o policial enfrenta
dentro e fora de seu trabalho e as conseqüências desse estresse na sua saúde:
“convivemos com vários tipos de situações, onde somos pressionados por
superiores que exigem muito e não oferece nenhum meio de trabalho melhor, temos
os problemas de casa, as dividas e o pequeno salário, onde muitas vezes temos
que perder nossa folga trabalhando em serviço extra, nos afastando cada vez mais
de nossa casa, por este motivo existe tanto divórcio no meio da segurança
publica, e elevando assim o estresse ao máximo, vindo a causar as famosas
doenças do coração, pressão ETC.”
2.2.3 -
Saúde Psicológica:
Frustrado
em suas expectativas, afastado de seus entes queridos, vendo negados seus
direitos trabalhistas como férias, horas extras, etc, muitos policiais sofrem
com doenças como depressão, alcoolismo, dependência química, etc.
Trabalhando
em sofrimento físico, emocional e psicológico, aumentam as chances de erro na
atividade policial, provocando tragédias e punições desnecessárias.
No curso
“Saúde ou Doença: de qual lado você está?”, um dos fóruns disponibilizados
discutia sobre as doenças mais observadas. As participações foram muito
parecidas nas cinco turmas. As doenças de ordem psicológica mais observadas
foram: Estresse, Alcoolismo e Depressão. Em seguida, com um número
significativo de referências, aparecem doenças como: Transtorno bi-polar, síndrome
de Burn-Out e dependência química.
Na
síndrome de Burn-Out, o profissional é cobrado acima de suas possibilidades e
dos recursos que dispõe. Inicialmente, usa o próprio estresse como motivação e
trabalha ainda mais, até que, exausto e sem perceber um resultado efetivo de
seu esforço, entra em colapso e passa a agir com indiferença e insensibilidade.
2.3 -
Assédio Moral
O
contexto político atual cobra uma postura garantista, democrática e respeitosa
no tratamento do cidadão pelo policial, e nem poderia ser de outra forma.
Cobradas pela sociedade e pela imprensa, as instituições cobram de seus agentes
a polidez no trato com os cidadãos, sejam inocentes, suspeitos ou criminosos
declarados.
Paradoxalmente,
esse respeito e dignidade que se exige, não são oferecidos ao policial. Em seu
local de trabalho, o policial muitas vezes é submetido a tratamento
desrespeitoso por parte do cidadão e dos superiores. Sofre com ofensas, muitas
vezes em presença de outras pessoas, sendo humilhado publicamente.
Um
aspecto desse assédio pode ser observado quando a administração aumenta a
cobrança ao profissional ao mesmo tempo em que diminui os recursos que lhe são
oferecidos. O não cumprimento das exigências determinará punições, o
profissional sabe disso, mas, ainda assim, é sempre lembrado por sua chefia.
Essa “lembrança” toma ares de ameaça e muitas vezes é proferida em público,
constituindo-se também em humilhação.
Em geral
o policial responde à sobrecarga de trabalho e à ameaça de punição em caso de
fracasso trabalhando mais. Esse esforço adicional não é reconhecido, nem
implícita nem explicitamente pela Administração, pelo contrário, esta entende
que essa é a capacidade laborativa normal do profissional e que antes ele
estava “fazendo corpo mole”.
Outro
aspecto do assédio moral é a sumária negação de direitos. O policial raramente
consegue gozar suas férias ou licenças. Geralmente a Administração justifica a
negação do direito como “imperiosa necessidade do serviço público em face da
falta de servidores”. Ora, essa “imperiosa necessidade”, se de fato existe, se
deve tão somente à má gestão e o trabalhador não pode, de forma alguma, arcar
com os custos de uma gestão ineficiente.
2.4 –
Insegurança
2.4.1 -
Insegurança Física:
O risco à
integridade física e mesmo à vida é inerente à atividade policial. Todavia,
muito diferente do que se concebe na opinião pública, costuma ser a menor das
preocupações do policial. O policial em geral assimila bem o risco que sua
condição funcional representa a si e à sua família e procura, dentro de suas
possibilidades, adotar medidas para minimizar esse risco. Essas medidas são
limitadas pelo baixo poder aquisitivo que seus vencimentos lhe proporcionam.
2.4.2 -
Insegurança Jurídica:
O
policial tem frações de segundo para decidir sobre o direito de terceiros, no
local do fato e no calor dos acontecimentos. Meses ou até anos depois, sua ação
será analisada e julgada com toda a calma e ponderação por juízes e
corregedores que, em geral, já têm uma visão negativa pré-concebida da atuação
policial. Assim é que, a cada ação, o policial é aterrorizado pelo medo da
punição, seja em função daquela ação ser considerada abusiva, seja em função de
ser considerada prevaricação.
2.4.3 -
Insegurança Financeira:
O
policial pode ser removido a qualquer tempo e isso, como vimos, refletirá nos
seus vencimentos. Em caso de licença ou outro afastamento, também sofrerá com a
perda das gratificações. O policial não tem como garantir que conseguirá
cumprir seus compromissos financeiros, como aluguel, financiamentos, escola,
etc.
Em
decorrência disso, o policial geralmente sofre com transporte, moradia e
assistência médica inadequada. Segregado pela elite que o emprega, acaba
convivendo com os seus pares, aqueles a que se dispõe a oprimir e que lhe
odeiam. Aqui a insegurança financeira leva, por via transversa, à insegurança
física.
3.
CONCLUSÃO
O
policial sofre contínuas e diversas agressões, em que pese o estigma de
opressão atribuído à classe. Espremido entre a elite, que lhe nega
reconhecimento e os mais básicos direitos trabalhistas e a sociedade que deve
oprimir para garantir privilégios daquela elite, o policial vive em uma “zona
nebulosa”, desamparado pela “nobreza” e rejeitado pela “plebe”, sua classe. Sua
condição se assemelha, como disse na Introdução, à do capitão do mato:
Trabalhava para o senhor do engenho oprimindo o escravos, sem se dar conta que
também é um deles (escravos). Ignorado pelo primeiro e odiado pelos segundos, o
capitão do mato fica isolado sem ter quem lhe defenda.
O
policial, nosso capitão do mato moderno, constitui, por paradoxal que possa
parecer, verdadeiro grupo vulnerável: Mais do que negros, idosos, homossexuais,
deficientes, etc, sofre discriminação de todos os segmentos da sociedade, seus
próprios pares, e, diferentemente daqueles grupos, não tem o policial, nenhuma
instituição ou organização que o defenda efetivamente.
O
primeiro passo para começar a reverter a situação descrita acima, consiste na
concepção, pelo policial, de sua condição de “cidadão qualificado pelo
serviço”, integrante e representante da sociedade. Esse entendimento permitirá
ao policial atuar com cidadania, legitimando-o a exigir, da população e de suas
próprias instituições, o reconhecimento dessa condição. O policial deve,
recusar veementemente o papel de “ferramenta da opressão” que lhe é oferecido
pela elite, outrossim, deve reconhecer-se como parte integrante da sociedade.
Deve, como qualquer trabalhador, exigir seus direitos, melhores condições de
trabalho e uma remuneração mais digna, capaz de compensar a afetividade
perdida.
4.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARALDI,
Tereza Cristina Albieri; SOUSA, João Alberto Maciel de; SANTOS, Lídia Cecília
dos. Apostila do Curso Saúde ou Doença: de qual lado você está? SENASP/MJ,
2009.
BRETAS, Marcos Luiz. Duzentos
anos de polícia no Brasil. Disponível em:
.
Acesso em 01.Jun.2011.
GOMES, Cláudio Pinheiro. Policial
refém: drama e agonia de um salário vil. Disponível em: <
http://www2.forumseguranca.org.br/node/22086>. Acesso em: 01.Jun.2011.