30 de mar. de 2012

A prevaricação e a denunciação caluniosa



Prof. Jeferson Botelho
Temas Jurídicos, Policiais e Acadêmicos
A prevaricação e a denunciação caluniosa
19 de setembro de 2009
Originalmente publicado Sob o Título Conceito Aberrante de Prevaricação em 09/08/2009.
PUBLICADO NA REVISTA CONSULTOR JURÍDICO SOB O TÍTULO A prevaricação e a denunciação caluniosa, dia 19/09/2009.

Por Jéferson Botelho

No exercício de suas atividades profissionais, é comum a Autoridade Policial receber requisições de Juízes de Direito, consignando prazo para cumprimento de diligências, com a indevida advertência “sob pena de prevaricação”.

Antes de definir o que vem a ser o delito de prevaricação, é bom salientar que a Polícia faz parte do Poder Executivo, muito embora seja chamada impropriamente polícia judiciária, e possui suas funções bem definidas nas Constituições Federal, artigo 144, parágrafo 4º e Estadual e nas leis respectivas leis orgânicas.

Existe uma salutar separação de funções, chamado indevidamente por muitos de separação de poderes, artigo 2º da Constituição Federal de 88. Assim, existem as funções legislativas, executivas e judiciárias. Cada função convivendo harmoniosamente com a outra, sem atropelos e sem invasões. Uma outra verdade, é que o Delegado de Polícia não é empregado e nem subordinado de juízes.

Existem várias espécies de prevaricação espalhadas em nossa legislação penal. A prevaricação comum é prevista no artigo 319 do Código Penal e a especial ou imprópria, acrescentada pela Lei 11.466/2007, é prevista no artigo 319-A, também do Código Penal.

O Código Penal Castrense define o crime de prevaricação também no artigo 319, única coincidência com a legislação comum, com a particular diferença quanto à pena, que é de detenção de 6 meses a dois anos, enquanto na legislação comum, a pena é de detenção de 3 meses a 1 ano.

Na legislação esparsa, o delito aparece no artigo 10, parágrafo 4º da Lei 1.521/51(crimes contra a economia popular), artigo 7º da Lei 4737/65 (Código Eleitoral), artigo 23 da Lei 7492/81(crimes contra o sistema financeiro Nacional), artigo 15, parágrafo 2º da Lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), artigo 45 da Lei 6.538/78 (serviços postais) e nos artigos 66, 67,68 e 69 da Lei 9.605/98 (Lei dos crimes ambientais).

O termo prevaricação vem do latim "praevaricare" e significa faltar com os deveres do cargo, torcer a justiça. Paulo José da Costa Jr. ensina que é o ato de andar tortuosamente, desviando do caminho certo. Para os romanos, prevaricação era conhecida por patrocínio infiel. No Código Criminal do Império (1830) a conduta era prevista no artigo 129 e o Código Penal Republicano, a conduta era prevista no artigo 207, mas sempre presente o elemento normativo do tipo, consubstanciado pelo interesse ou sentimento pessoal, estudado na doutrina no campo do elemento subjetivo especial do tipo.

A conduta típica é assim definida do Código Penal Brasileiro:

Artigo 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa.

Artigo 319-A. Deixar o diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo. Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

Analisando o núcleo do tipo penal, afirma-se que retardar significa atrasar ou procrastinar. Deixar de praticar é desistir da execução e praticar significa executar ou realizar. O crime é funcional próprio, porque somente pode ser praticado por funcionário público, cuja qualidade integra a construção típica e a retirada desta qualidade, torna-se o fato atípico. O objeto jurídico é o bom andamento do serviço público e o prestígio da Administração Pública.

O delito é classificado doutrinariamente como sendo próprio, formal, comissivo, instantâneo, unissubjetivo, plurissubsistente (praticar ato contra expressa disposição da lei) unissubsistente (deixar de praticar) e de conteúdo variado. Mas além desses elementos objetivos-descritivos, ainda é necessário a comprovação de outro elemento objetivo-normativo, que é o retardamento, omissão, prática indevida, sempre para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

O professor Damásio Evangelista de Jesus, em sua obra Código Penal Anotado, entende que interesse pessoal é a vantagem pretendida pelo funcionário, seja moral ou material. O sentimento diz respeito ao afeto do funcionário para com as pessoas, como simpatia, ódio, vingança, despeito, dedicação, caridade etc. Animosidade: RT 520:368.

Lição importante nos fornece o excelso Professor Cezar Roberto Bitencourt, em seu Tratado de Direito Penal, Parte Especial, volume 5, 2ª Edição, Editora Saraiva, página 105, quando assevera:

“ é necessária, ainda, a presença do elemento subjetivo especial do tipo, representado pelo fim especial de agir, que, na dicção da descrição típica, é “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”,isto é, há a necessidade de que o móvel da ação seja para a satisfação desse tipo de interesse ou sentimento. Interesse pessoal, que pode ser material ou moral, é aquele que, por alguma razão, satisfaz pretensão, ambição ou anseio do agente, podendo ser representado por qualquer vantagem ou proveito que possa ser obtido pelo sujeito ativo em razão de sua conduta incriminada nesse tipo penal”. Continua o nobre jurista: “Sentimento pessoal, por sua vez, reflete um estado afetivo ou emocional do próprio agente, que pode manifestar-se em suas mais variadas formas, tais como amor, paixão, emoção, ódio, piedade, carinho, afeto, vingança, favorecimento ou prejuízo a alguém etc.”

Quando por exemplo, as investigações legadas a efeito num inquérito policial não são concluídas no prazo legal, por diversas razões, como falta de agentes de polícia, escrivão de polícia, viaturas, materiais de escritório, acúmulo de serviços e outras circunstâncias não se pode cogitar o cometimento de crime de prevaricação e nem mesmo a prática de infração administrativa.

Crime não pode existir porque não preenche os elementos de sua definição legal. Infração administrativa não pode configurar porque ninguém é obrigado ao impossível e ainda pela inexigibilidade de conduta diversa. Se a existência do crime fosse tão-somente um mero ajuste formal, positivista, também poderia cogitar-se de prevaricação, quando o juiz de direito declarasse a extinção da punibilidade pela prescrição, artigo 107, inciso IV, Código Penal, ou proferisse julgamento extemporaneamente, pois é sabido que existem processos que não são julgados no prazo legal e acabam perdendo sua finalidade social. E com a adoção do princípio da concentração previsto no artigo 400 e 411 do Código de Processo Penal, com nova redação determinada pelas Leis 11.719/2008 e 11.689/2008, será que não aumentaria os casos de transgressões a norma?

Os delegados de polícia em situações corriqueiras devem ser condecorados com moção honrosa e não punidos como querem os “deuses do direito” ou “caçadores de holofotes”, pois normalmente trabalham sem recursos, com baixos salários, entregam suas vidas em prol da Segurança Pública e, às vezes, morrem prematuramente acometidos por enfarto e outras doenças psicossomáticas.

O delegado de Polícia, membro de uma Corregedoria, que instaura inquérito policial de ofício para apurar situações dessa natureza, contra outro delegado de Polícia, sabendo ou devendo saber das dificuldades humanas e logísticas porque passa a Polícia Civil, cujo objetivo é unicamente dar satisfação a juízes e promotores, comete crime de denunciação caluniosa, artigo 339 do Código Penal.

Define o Código Penal, o delito de denunciação caluniosa, como crime cometido contra a Administração da Justiça, in verbis:
Artigo 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente. Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa.

Segundo ensinamento do Professor Guilherme de Souza Nucci, a autoridade age de ofício e instaura investigação policial ou processo judicial contra alguém (pessoa determinada), imputando-lhe crime de que o sabe inocente, responderá criminalmente pela prática do delito capitulado no artigo 339 do Código Penal.

Na mesma linha de raciocínio, deveria responder por denunciação caluniosa, o juiz de Direito ou o promotor de Justiça que requisita a instauração de inquérito policial para apurar crime de prevaricação nessas mesmas condições, com temeridade ou abuso de poder, considerando que para a eclosão do procedimento investigatório é necessária a presença de justa causa, um suporte mínimo probatório, a fim de evitar contumélias gratuitas, revanchistas e esquizofrênicas ao princípio da dignidade humana. A dignidade da pessoa humana é a pedra angular sobre que deve ser construído todo o monumento do sistema penal. O princípio constitucional da proteção e da promoção da dignidade do homem é a célula-mãe desse sistema e, por isso, também seu fundamento máximo.

Jeferson Botelho é delegado de Polícia em Minas Gerais, doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Buenos Aires e professor universitário.

Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2009.