Disponível em: http://flitparalisante.wordpress.com/2012/12/09/luiz-flavio-gomes-nova-policiatica-de-seguranca/
Acesso em: 9 dez. 2012
LUIZ FLÁVIO
GOMES – Nova polí(cia)tica de segurança
07/12/2012
– 13:00
LUIZ FLÁVIO
GOMES (@professorLFG)*
O
desrespeito com que os governantes, em geral, tratam a polícia civil e a
polícia técnica (científica) passa, dentre outros, por dois pontos cruciais:
(a) militarização da segurança pública e (b) doutrina do ultraliberalismo
norte-americano e inglês.
Militarização
da segurança pública. É da tradição brasileira o modelo militarizado de
segurança pública. E o que sempre foi da tradição brasileira agora parece estar
virando moda praticamente mundial: a militarização da segurança urbana, marcada
por um padrão autoritário de controle social. Que estaria ultrapassado, segundo
Zaffaroni (2012a, p. 425):
“O modelo
policial militarizado, hierarquizado, de ocupação territorial e com capacidade
de arrecadação autônoma está esgotado na globalização, porque é incapaz de
fazer frente às novas formas de tráficos e mesmo ao delito convencional. Ele
gera uma forte desconfiança na população, o que repercute no esclarecimento dos
delitos: as pessoas resistem em testemunhar, temem represálias, e, com ou sem
fundamento, suspeitam que os funcionários possam ser cúmplices ou encobridores.
É um modelo suicida, que serviu para uma sociedade estratificada ou
oligárquica, mas que hoje destrói uma instituição necessária, porque vai
anulando sua função manifesta, perde eficácia preventiva, os comandos médios
escapam ao controle, não é possível controlar a corporação quando excede certa
dimensão, o recrutamento indiscriminado permite que se infiltrem algumas
pessoas que pretendem montar seus próprios sistemas de arrecadação,
associando-se à delinquência comum, a imagem do Estado se deteriora, a decepção
se espalha.”
Guerra,
política e negócios. No que diz respeito especificamente ao Brasil,
“considerando-se que se trata de uma sociedade de enclaves [territórios dentro
de outro território], caracterizada por uma arquitetura urbana de secessão, por
um Estado permeável a interesses particularistas e por desigualdades muito
expressivas, a gestão política de conflitos entre nós tem privilegiado a
militarização da segurança pública, o uso arbitrário da força policial e as
operações de guerra interna travadas nas inúmeras zonas de não direito de nossa
sociedade (…) esse novíssimo urbanismo militarizado consiste na colonização
crescente do espaço urbano e da vida cotidiana nas cidades por uma racionalidade
militar, vale dizer, por práticas e discursos que têm no centro a noção de
guerra (…) na gestão das cidades do capitalismo global e isso é decisivo para a
geração e ampliação dos negócios (novas tecnologias de controle, indústria da
guerra, gestão militarizada do crime etc. (…) está estabelecido o amálgama
entre guerra, política e negócios”) (Laurindo D. Minhoto, O Estado de S. Paulo
de 14.10.12, p. J3).
Para que
servem todos os discursos bélicos e as práticas militarizadas? Para desencadear
negócios assim como as múltiplas e variadas violências do Estado (como bem
sublinha Pilar Calveiro: 2012, p. 69 e ss.; Anitua: 2009, p. 145 e ss.), que se
acham inseridas dentro de um contexto de sobreposição entre o Estado de Direito
e o Estado de Exceção, sendo que este último nada mais representa que uma
suspensão fática e jurídica do Direito e dos direitos, que deixam de irradiar
sua eficácia normativa para todo o território de sua soberania (Agamben: 2005, passim).
Polícia
militar “vs” polícia judiciária. Parece muito evidente que uma política de
segurança militarizada acabe priorizando o segmento policial que garante a
governabilidade, em detrimento daquele que auxilia a Justiça penal na
descoberta dos crimes. Aliás, quanto mais ineficácia da polícia judiciária (a
que investiga os crimes), melhor para quem comete abusos no exercício da
segurança pública militarizada. A quantidade de recursos, de pessoal, de
tecnologia etc., dada para a polícia militar, é incomparavelmente maior que a
recebida pela polícia civil. Vale mais a garantia da governabilidade que a
descoberta de delitos. Se a polícia civil (judiciária) não descobre tantos
crimes, isso não derruba nenhum governo. Sem a garantia da polícia militar o
governo corre sério risco de queda. Tudo estaria a explicar a desatenção
daquela frente a esta.
Ultraliberalismo.
Entendendo-se a doutrina do ultraliberalismo norte-americano e inglês, que é
neoliberal na economia, neointervencionista no plano internacional e
neoconservador no campo penal – Supiot: 2011, p. 31 e ss.; Svampa: 2010, p. 21
e ss., fica mais fácil compreender não só a descontrolada expansão do direito
penal como, paradoxalmente, o tratamento diferenciado e discriminatório da
polícia civil e científica. O ultraliberalismo é pai do neoconservadorismo, que
constitui expressão do modelo de um direito penal (tendencialmente) autoritário
(direito penal máximo) (Pegoraro: 2011, p. 23; O’Malley: 2006, p. 155 e ss.).
O
neoconservadorismo difundido nas últimas décadas (especialmente a partir dos
anos 70, do século XX), sob a regência, em primeiro lugar, do discurso do
movimento da lei e da ordem e, agora, do populismo penal, é tido como o
principal desencadeador do chamado “grande encarceramento” (Pavarini: 2009, p.
28).
Racionalidades
do neoliberalismo. No plano econômico as racionalidades do neoliberalismo são
as seguintes: predomínio dos valores de mercado (abertura do mercado), de
ascensão individual, de competição e de mercantilização – privatização – dos
espaços e dos setores públicos, redução dos programas assistencialistas
(retomados com o governo Lula), revalorização da “meritocracia” individualista
(self made man), desconsiderando-se as estruturas sociais, reforma gerencial do
Estado, políticas sociais terceirizadas, não universalização dos direitos,
exclusão da participação popular nas decisões públicas, aproximação da política
aos valores religiosos, sujeição forte aos organismos internacionais, fusão e
concentração de empresas, domínio econômico da grande mídia, liberalização do
mercado financeiro etc.
Estrangulamento
do serviço público. O Estado brasileiro, com destaque para o Estado de São
Paulo, ao seguir a cartilha neoliberal, fez o enxugamento de todos os serviços
públicos, incluindo-se a polícia civil. É isso que explica, em grande parte, as
péssimas condições de trabalho da polícia, dos professores, dos médicos
públicos etc., a falta de meios materiais, o isolamento da polícia civil das
demais carreiras jurídicas do Estado etc. O serviço público foi desvalorizado,
porque o que dá visibilidade é obra, incluindo-se aqui a construção de
presídios, em detrimento das escolas e dos serviços mais essenciais (saúde,
educação, justiça etc.).
Desestímulo
crônico. A polícia civil faz concursos contínuos, mas perde grande parcela dos
candidatos para outras carreiras ou outros Estados, que remuneram melhor o
policial. “Crime se combate com inteligência, não com truculência ou com
redobrada violência. Hoje, cerca de 90% dos crimes não são investigados por
falta de recursos materiais e humanos, por falta de investimentos e de claro
protecionismo. O desestímulo na carreira é crônico” (Marilda Pansonato
Pinheiro, em Folha de S. Paulo de 15.11.12, p. A3). Morrendo 10 pessoas por
dia, a situação não está sob controle. Todo incentivo ao confronto não
soluciona nada, só gera mais violência. O “quem não reagiu está vivo” está se
transformando no reagindo ou não reagindo você está morto. Qualquer sinal verde
para a violência a deixa sem controle.
Referências
Bibliográficas
AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.
ANITUA,
Gabriel Ignacio. Derechos, seguridad y policía. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009.
CALVEIRO,
Pilar. Violencias de estado: la guerra antiterrorista y la guerra contra el
crimen como medios de control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores,
2012.
MINHOTO,
Laurindo D. O Estado de São Paulo, 14 out. 2012, p. J3.
O’MALLEY,
Pat. Riesgo, neoliberalismo y justicia penal. v. 5. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006.
PAVARINI,
Massimo. Castigar al enemigo. Criminalidad, exclusión e inseguridad, v. 8.
Quito: Flacso, 2009.
PEGORARO,
Juan S. La política penal de la defensa social.Em: GUTIÉRREZ, Mariano. Populismo
punitivo y justicia expresiva. Buenos Aires: Fabián J. Di Plácido Editor, 2011.
PINHEIRO,
Marilda Pansonato. Folha de São Paulo, 15 nov. 2012, p. A3.
SUPIOT,
Alain. El espíritu de Filadelfia: la justicia social frente al mercado total. v.
430.Barcelona: Ediciones Península, 2011.
SVAMPA,
Maristella. La sociedad excluyente: la Argentina bajo el signo del
neoliberalismo. Buenos Aires: Taurus, 2010.
ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. São Paulo: Saraiva, 2012a.
*LFG –
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do
Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor
de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a
2001). Estou no www.professorlfg.com.br.