Disponível em:
http://www.istoe.com.br/reportagens/250826_VIOLENCIA+FORA+DE+CONTROLE
Acesso em: 03.11.2012
| N° Edição: 2243 | 01.Nov.12
- 18:00 | Atualizado em 03.Nov.12 - 23:42
Violência
fora de controle
Escalada de
assassinatos em São Paulo escancara erros da política de segurança pública
estadual e mostra que é preciso mudar a abordagem para enfrentar o crime
organizado
Flávio Costa e Natália Martino
São Paulo vive há meses uma
guerra silenciosa que denota a falência da política de segurança pública
estadual. Policiais Militares são alvejados na porta de casa, chacinas se
sucedem, criminosos incendeiam ônibus e comerciantes e escolas fecham as portas
ao menor ruído sob “toque de recolher”, numa onda de medo que tomou conta da
região metropolitana da cidade. Na última semana, a escalada de violência
atingiu o auge. Em apenas uma semana, entre 25 de outubro e 1º de novembro, 72
pessoas foram assassinadas na Grande São Paulo. É um número superior ao da
média mensal de homicídios que ocorreram entre janeiro e setembro, em Ciudad
Juarez, no México, município dominado pelo narcotráfico e conhecido como a
cidade mais violenta do mundo.
Os assassinatos das últimas
semanas seguiram um mórbido padrão: um policial é executado e, em seguida,
vários civis são mortos na mesma região por homens mascarados. No pico de
violência iniciado na quinta-feira 25, o 86 º PM assassinado neste ano foi
alvejado por dois indivíduos de moto, na porta de casa, na Vila Nova Curuçá,
zona leste da capital. Na sequência, na mesma região, duas pessoas também foram
mortas a tiros por homens encapuzados. “Considerando-se a dinâmica dos crimes,
me parece muito plausível a hipótese de se tratar de assassinatos de policiais
cometidos pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e subsequente
retaliação praticada por milícias policiais”, avalia a socióloga Camila Dias,
pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade
de São Paulo (USP).
Especialistas ouvidos por
ISTOÉ elencam diversos erros cometidos pela atual administração no combate ao
crime organizado: a falta de reconhecimento público da dimensão e da força do
PCC, o investimento na militarização das ações de segurança, o esvaziamento das
funções da Polícia Civil e o excessivo encarceramento em um sistema prisional
dominado pelos criminosos.
Embora continue a minimizar a
força do crime organizado, o governo estadual esboçou uma reação tardia ao
ocupar Paraisópolis, a maior favela da capital, com 600 homens da PM na semana
passada. Em um prédio da comunidade funcionava uma espécie de quartel do PCC,
onde foram encontrados documentos que provam a relação do maior grupo criminoso
do País com as recentes mortes de PMs. As execuções foram ordenadas, segundo o
secretário de Segurança Antonio Ferreira Pinto, por Francisco Antonio Cesário
da Silva, o Piauí, integrante da facção, acusado de chefiar o crime na favela.
Os papéis encontrados pela PM durante a ocupação pertencem a membros da
quadrilha comandada por Piauí. Condenado por crimes como roubo, sequestro,
homicídio, receptação e falsidade ideológica, ele está preso desde agosto em
Avaré, a 272 quilômetros da capital paulista.
Entre os documentos revelados
pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, havia cadernos com nomes, endereços,
descrições físicas e detalhamento da rotina de mais de 40 policiais militares
ao lado de uma carta com ordens para matar dois policiais para cada “execução
covarde” de um membro do PCC. “Esclarecemos que não foi (sic) nós que buscamos
esse caminho, ao contrário, estamos sendo executados na maior covardia na mão
da Polícia Militar, da Rota”, diz um trecho da carta, fazendo referência direta
ao batalhão de elite da PM, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Detalhes de
como funcionava o chamado tribunal da facção eram relatados em páginas que
incluíam os nomes dos responsáveis por conduzir os julgamentos, as testemunhas
e até as sentenças aplicadas a cada delito.
Diante de tantas mortes e das
novas revelações, não é de surpreender que os próprios PMs estejam assustados.
Os ataques em série fizeram com que parte dos policiais buscasse socorro na
religião. A associação PMs de Cristo lançou a campanha “Ore por um PM”, que
consiste em um ciclo de orações, até o dia 15 de dezembro, contra a morte de
colegas. “Neste momento em que estamos enfrentando esses sobressaltos é preciso
reforçar a nossa fé em Deus e a união da corporação”, diz o capitão Joel Rocha,
presidente da entidade.
O aumento dos confrontos e da
letalidade da polícia pode ter detonado esse ciclo de retaliações entre PMs e
criminosos. O atual secretário Antonio Ferreira Pinto priorizou as ações de
enfrentamento e de policiamento ostensivo da Polícia Militar em detrimento do
trabalho investigativo da Polícia Civil. “Ocupações como a de Paraisópolis
amenizam a situação, mas, depois que a PM sai, o crime volta a imperar. É
preciso um trabalho de investigação profundo por parte da Polícia Civil para
identificar os chefes e sufocar a rede de financiamento do crime organizado”,
afirma o delegado George Melão, presidente do sindicato paulista da categoria.
Outra falha remonta ao início
dos anos 2000. À medida que aumentava o encarceramento, o PCC arregimentava
novos membros no sistema prisional. Líderes foram espalhados pelas prisões do
Estado, mas não foram mantidos em isolamento. A partir dos ataques de 2006, a
facção, que já era poderosa nos presídios, passou a controlar as atividades
ilegais do lado de fora, como tráfico de drogas, assaltos e sequestros. “O
governo cedeu espaço ao PCC no sistema penitenciário. Há uma espécie de acordo
tácito: prendemos os bandidos, mas eles fazem o que querem na cadeia”, afirma o
ex-subsecretário nacional de Segurança Pública Guaracy Mingard, para quem é
fundamental isolar as lideranças da facção , restringir, de verdade, o uso de
celulares e retomar o controle das penitenciárias pelo Estado.
É preciso mudar a abordagem
para vencer o crime organizado em São Paulo. O Rio de Janeiro, cidade que
durante décadas viveu à mercê de facções criminosas, só conseguiu recuperar
territórios dominados pelos bandidos e reduzir os índices de violência quando
assumiu que a postura até então estava equivocada. As autoridades paulistas
deveriam aprender com o exemplo carioca e abandonar a tática do enfrentamento.
“É necessário fortalecer a Polícia Civil e investir em inteligência policial
para deixar claro aos criminosos que todos os crimes serão punidos”, diz a
socióloga Camila, da USP. Outra medida eficiente é secar os lucros na origem e
atacar os negócios que permitem a lavagem de dinheiro e, consequentemente, o
funcionamento da máquina do crime. “A fonte de arrecadação do PCC tem que ser
cortada”, defende Mingard. “No caso do tráfico de drogas, deve-se impedir o
funcionamento das bocas e prender os chefes dos locais.”
Diante de um inimigo comum, em
vez de trabalharem em conjunto, autoridades federais e estaduais passaram a
semana trocando farpas. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmava
que tem oferecido ajuda à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e vagas
em presídios federais para isolar os líderes do PCC desde junho. E o secretário
Ferreira Pinto e o governador Alckmin diziam que apresentaram um plano de ações
e não obtiveram respostas. No final da semana, eles ensaiaram um entendimento,
mas a única ação concreta foi a ocupação de Paraisópolis. A polícia deteve
suspeitos, apreendeu armas de fogo, munição e drogas. Especialistas temem,
entretanto, que sejam presos apenas peixes pequenos. “Se não investirmos em
investigação, vamos ter que esperar para ver qual grupo se cansa primeiro de
matar e interrompe o ciclo de ‘mata-mata’”, diz Luciana Guimarães, diretora da
ONG Sou da Paz.
Fotos: Adriano Machado; Apu
Gomes/Folhapress; JOSÉ PATRÍCIO/ESTADÃO