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Acesso em: 18 fev 2012
quarta-feira,
11 de janeiro de 2012
'Dor e
sofrimento' não é usado como opção terapêutica - apenas como insígnia
Tratar
questão de saúde pública por meio de uma operação militar não é apenas
confusão. É pura ideologia.
A ocupação
da Cracolândia tem pouco a ver com o vício, com o comércio ou com o tratamento
de drogados. É a afirmação da ordem e da disciplina, por intermédio de uma
doutrina que impõe sempre a supressão da liberdade como a primeira resposta a
um problema.
Não é à toa
que o cerco, a pressão e a violência chegam imediatamente; o auxílio, se
calhar, o mês que vem.
O discurso
da ordem é cada vez mais invasivo e tenta se justificar sobre uma população que
se supõe acossada por muitos medos.
Afinal, é o
que nos dizem constantemente a TV, os grandes jornais e as revistas semanais: a
impunidade não tem limites, a criminalidade assumiu proporções estratosféricas,
a droga virou epidemia etc. Bordões atemporais que nos fazem crer que a ação
militar seja cada vez mais justificável, como se houvera chegado, finalmente, a
hora da ultima ratio.
'Dor e
sofrimento' não está sendo usado pela polícia paulista como uma opção
terapêutica - apenas como insígnia.
Que os
governos queiram usufruir deste bônus político em ano eleitoral nem é caso que
se estranhe, pois aqui, como em qualquer outro canto, por bons ou maus
fundamentos, administradores sempre pretendem se perpetuar em seus cargos.
Mas que
consigam adesão de cidadãos ao progressivo esvaziamento de suas liberdades, é
simplesmente de estarrecer.
Não deixa
de ser lastimável presenciar o gene do autoritarismo florescendo no ventre na
democracia, mas, verdade seja dita, o fato não é inédito na história da
humanidade.
A
expectativa de que um direito penal extremamente tonificado ponha fim de vez à
criminalidade faz parte deste enredo ideológico.
Sem
qualquer lastro científico, diga-se, como nos recorda o fiasco preventivo da
Lei dos Crimes Hediondos, quando crimes aumentaram na mesma proporção das
penas. A lei se foi, mas nos deixou, como legado, um crescente encarceramento
feminino e as facções criminosas nas cadeias.
A ânsia de
punir pode até reconfortar quem procura respostas rápidas e soluções
simplistas. Talvez por isso muitos aplaudam hoje a supressão da liberdade,
iludidos na vã esperança de que apenas criminosos ou drogados serão, ao final,
por ela atingidos.
Vai daí que
um senador com experiência na área criminal, como Demóstenes Torres (DEM-GO),
proponha, a essa altura, a volta de penas de prisão para o uso do entorpecente.
Se não
conseguimos controlar o tráfico, certamente devemos punir os usuários -o que se
adequa perfeitamente à ideologia da ação paulista. Como diria o pai repressor:
você sabe que a porrada dói mais em mim do que em você...
A tônica do
ressurgimento dos espaços autoritários reside, também, no prestígio exagerado
dos fins em relação aos meios, estes cada vez mais desprezados.
Em decisão
recente, entendeu-se ilícita a divulgação por redes sociais de postos de
fiscalizações da lei seca. Estaria configurado aí o "atentado à segurança
de serviços públicos", tipo criado pelo legislador para punir condutas
graves como a violação da tubulação de água que serve uma cidade, por exemplo.
Levar a
criminalização até esse limite, em nome da eficácia policial, é o mesmo que
jogar o bebê fora, com a água suja do banho.
Ao
indivíduo, em breve, só restará ocupar os diminutos espaços que não ousem
perturbar a "ordem pública" - equação que quase sempre resulta no
esfacelamento da democracia.
Esse mesmo
tônus de disciplina, todavia, não se preocupa com a repressão de condutas que
visam justamente garantir a liberdade, como é o caso da homofobia.
Pouco
importa que um homossexual seja vítima da intolerância a cada dia,
conservadores que pregam o fortalecimento do poder de punir do Estado
curiosamente não pretendem levá-lo a esse ponto. A liberdade não merece tanto
prestígio.
E em pleno
século 21, há quem critique o efeito perverso da fiscalização do trabalho
escravo, por supostos prejuízos à competitividade das empresas, como se ainda
estivéssemos discutindo as conveniências da Abolição.
O ponto
máximo desse cinismo penal, no entanto, se expressa na pacata conivência com a
violência policial, que, para muitos, não deixa de ser apenas um efeito
colateral conhecido e suportável, de um objetivo mais relevante.
Todo esse
quadro de autoritarismo emergente se casa como uma luva com a criminalização da
política, impondo generalizações à própria idoneidade do sistema.
Estudantes
são baderneiros, movimentos sociais são terroristas e políticos corruptos.
Mas quando,
enfim, conseguirmos nos livrar de toda essa 'escória', quem afinal estará no
comando para a ordem e o progresso do país, os homens da disciplina?
Já
assistimos a esse filme antes e sabemos que o final não é feliz.
Postado por
Marcelo Semer às 09:
Marcelo Semer, 45 anos, juiz de direito em São Paulo e escritor.
Membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, autor do romance
"Certas Canções". Colunista no Terra Magazine.