22 de mai. de 2011

A correição ilegal do judiciário

Disponível em: http://adpesp.org.br/artigos_exibe.php?id=132 Acesso em: 22 maio 2011

Artigos

28/01/2010 - A correição ilegal do judiciário

Autor: José Luiz Miglioli

A correição realizada pelo Poder Judiciário no interior das Delegacias de Polícia interfere em assuntos de exclusiva competência do Poder Executivo, com desvio de finalidade e inexistência do interesse público, restando configurado o abuso do poder (ou desvio de poder). Na verdade, essa iniciativa atina-se pelo influxo da ilegalidade, bem como traz o presságio de adverso prejuízo à respeitabilidade da Polícia Civil.


Essa correição do Judiciário constitui ato injustificável e desrespeito à ordem constitucional. A invasão às esferas constitucionais atribuídas à Polícia Civil e aos Delegados de Polícia no exercício das funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais caracteriza, inegavelmente, a usurpação de função pública.

Ressalte-se momentaneamente outro excessivo abuso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, constante no Regimento Interno. Expressa o artigo 92, § 4º que o relator de procedimento apuratório da conduta de transgressão de magistrado, não disciplinar, pode requisitar e fiscalizar os trabalhos da autoridade policial. E, o mais incrível consta no artigo 93. Nesse caso, o magistrado não será levado a repartição policial.

É um paradoxo. Se o magistrado não pode comparecer em repartição policial, então, o que faz no momento da correição? Observa-se, assim, a falta de apreço do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para com a autoridade policial e às repartições policiais.

A lei faculta o Judiciário fiscalizar a polícia judiciária, mas no exercício da função jurisdicional e não administrativamente. Inexiste lei complementar - tanto da União como dos Estados-membros – permitindo ao Poder Judiciário fiscalizar a Polícia Civil ou as atividades dos Delegados de Polícia.

O Código Judiciário do Estado de São Paulo não permite a correição interna em Delegacias de Polícia. E, os órgãos do Poder Judiciário não podem legislar sobre essa matéria de competência específica do Poder Executivo.

É ilegítima e ilegal a atividade correcional administrativa desenvolvida pelo Poder Judiciário no interior das Delegacias de Polícia, pois tem como parâmetro normas instrumentárias inconstitucionais que desrespeitam a hierarquia das leis.

Não há fundamento legal para o Judiciário fiscalizar os trabalhos dos Delegados de Polícia, os livros internos da Unidade Policial e demais atos da polícia judiciária, no aspecto administrativo.

A Constituição Federal não outorgou à lei complementar competência para regular as funções de polícia judiciária. Não se admitindo, portanto, delegação nem à lei ordinária e menos ainda a ato administrativo oriundo do Poder Judiciário para disciplinar a matéria.

Ora, se o Poder Judiciário não consegue resolver os seus próprios problemas - diga-se de passagem são inúmeros - como exemplo, a morosidade e a desorganização cartorária, como pode pretender fiscalizar administrativamente outra instituição?

Além das várias críticas contra à atuação do Poder Judiciário, acolhe-se a manifestação do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM, no sentido da morosidade e, igualmente, o excesso de burocracia. (2º Fórum Social Mundial, 31/01 a 05/02 de 2002)

Cumpre ressaltar a única competência do Poder Judiciário, ou seja, somente tem a função da jurisdição, conforme lhe outorgou o Estado. Para tanto, atua com imparcialidade, o direito objetivo. A função jurisdicional obriga o magistrado a aplicar a lei somente, através do processo, de conflitos intersubjetivos, mas sempre na dependência da provocação das partes.

Frisa-se: o Poder Judiciário não tem outra função definida na legislação vigente, a não ser a atividade jurisdicional, consistente em compor e solucionar os conflitos de interesses em cada caso concreto, por meio de processo judicial.

No caso das correições em Delegacias de Polícia, questiona-se a forma, pois não ocorre no liame das funções jurisdicionais. Certamente, o Poder Judiciário não pode fazer o controle administrativo dos atos de polícia judiciária.

Essa anomalia praticada pelo Judiciário pode ser impedida pelo Delegado de Polícia, caso inexista determinação hierárquica oriunda do Poder Executivo determinando o atendimento, pois o artigo 5º, II, da Constituição Federal assegura que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão virtude de lei.

O artigo 50 do Código Judiciário do Estado de São Paulo menciona a polícia judiciária, mas isso é possível na função jurisdicional e não administrativa. Isso em decorrência de que os artigos 144, § 4º, da C. F. e 140 da C. E. incluíram as atividades de polícia judiciária como pertencente a Polícia Civil. Assim, qualquer medida contrária é um atentado contra o preceito fundamental assegurado pelos preceitos constitucionais.

A função da Polícia Civil pode ser de natureza judicial (polícia judiciária), porém pertence ao Poder Executivo e não ao Poder Judiciário. O Delegado de Polícia é servidor público integrado ao Poder Executivo.

Por essa razão, os integrantes da Polícia Civil não podem ser taxados como auxiliares da Justiça, pois esse cargo subordina-se ao Poder Judiciário e não ao Poder Executivo

Corretamente, os auxiliares da Justiça são os serventuários e funcionários da Justiça, ou seja, o escrivão, o oficial de justiça, o perito, o distribuidor, o contador judicial, o partidor, o depositário, o porteiro dos auditórios e o intérprete e suas atribuições são determinadas pelas normas da organização judiciária.

Mas, qual é a obrigação do Juiz Corregedor no ato da correição em Delegacia de Polícia?

Caso seja verificar a legalidade e a regularidade das investigações e, não as atividades funcionais e disciplinares dos policiais civis, também pratica desvio de função. Essa competência lhe é facultada no exercício da função jurisdicional e não administrativa.

Nesse contexto, os atos de polícia judiciária são constantemente e obrigatoriamente avaliados pelo magistrado corregedor permanente, durante o trâmite em seu respectivo cartório judiciário. A legalidade dos inquéritos policiais é fiscalizada pelo Juiz Titular em seu cartório.

Convenhamos. Se o Poder Judiciário não exerce o poder hierárquico – de competência do Poder Executivo - não lhe cabe o direito de corrigir irregularidades administrativas. Poderá analisar a legalidade dos atos administrativos, mas quando provocado e nas dependências do Poder Judiciário.

Convém realçar a seguinte distinção de funções:

a) - A função jurisdicional é exercida pelo Poder Judiciário, designando a atividade dos órgãos jurisdicionais, consistindo na incumbência afeta ao Juiz de decidir, através do processo e aplicar a lei aos casos concretos.

b) - A função de polícia judiciária é da responsabilidade das Polícias Civis, presidida pelos Delegados de Polícia, tendo por finalidade praticar todos os atos administrativos e não judiciais, objetivando investigar as infrações penais e sua autoria e demais atos de polícia judiciária.

No Estado de Direito, as relações sociais e dos órgãos estatais são disciplinadas por normas jurídicas de obrigatória obediência e aplicabilidade. Comparando o conjunto de leis que compõe a ordem jurídica com às demais formas de interpretações – analogia, os costumes e os princípios gerais de direito – entende-se a ilegalidade das correições do Judiciário, em dependências internas da Polícia Civil, pela ausência de normatização específica.

A atividade correcional exercida pelo Judiciário no interior das Delegacias de Polícia, com subordinação hierárquica ao Poder Executivo, está eivada de inconstitucionalidade, bem como ofende ao princípio da legalidade, tido como reserva absoluta da lei.

O princípio da independência e distinção dos Poderes veda ao Poder Judiciário editar normas administrativas para cumprimento dos integrantes do Poder Executivo. O Poder Judiciário e o Poder Executivo são independentes (C.F., art. 2º).

As Constituições reservaram à Polícia Civil um campo de atividade exclusiva que não pode ser invadido por norma infraconstitucional ou disposições de ato administrativo. (José Afonso da Silva, Revista da ADPESP)

A atividade correcional do Poder Judiciário internamente nas Delegacias de Polícia colide frontalmente com o princípio da separação dos poderes. Vê-se, pois uma intervenção do Poder Judiciário no Poder Executivo.

Na divisão e independência dos Poderes há desvinculação hierárquica. E, as atribuições são executadas sem prévia consulta ou justificativa uns dos outros integrantes desses Poderes. Por isso, o Judiciário não tem competência para exigir explicações administrativas ao Delegado de Polícia, a partir de correições internas em Unidades Policiais sob a sua administração.

Os doutrinadores ressaltam a importância da aplicabilidade da separação e independência dos Poderes. Senão vejamos.

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho diz sobre a obrigatoriedade de cada Poder aceitar e respeitar os atos dos demais. (Atos Administrativos – Saraiva – 1980 – pág. 153).

José Alfredo de Oliveira Baracho conclui não deva ser confiado a qualquer órgão um poder total, que conduzirá a formas autoritárias. (Processo Constitucional, págs. 26/37/47).

Gabino Fraga reconhece a imposição de distribuição de funções diferentes entre os poderes, de tal maneira que a cada um seja, essencialmente, atribuída à função que lhe diz respeito. (Derecho Administrativo, editorial Porrúa S?A – 6ª ed. Pág. 29 e ss)

Pelo princípio da legalidade as atividades do Poder Judiciário são limitadas e subordinadas à ordem jurídica, ou seja, à legalidade. Cumpre aos seus integrantes compreender e acatar a separação dos Poderes, pois a Polícia Civil subordina-se ao Chefe do Poder Executivo, representado pelo Secretário da Segurança Pública, nos termos dos artigos 62 e 139 da Constituição do Estado.

O Judiciário exerce função administrativa e não jurisdicional nas correições em Delegacias de Polícia. Essa iniciativa é ilegal. Falta-lhe a competência em razão da inexistência de lei. Para que houvesse a competência seria obrigatório a normatização de suas atribuições legais.

Acolhe-se o entendimento de M. Seabra Fagundes em haver incompetência toda vez que o agente excede ao agir o âmbito de atribuições que a lei lhe designa. (O controle dos Atos Administrativos – 5ª ed. – ed. Forense – p. 60)

Um dos requisitos de validade do ato administrativo é justamente a competência do agente expedidor. A competência nasce em razão de lei. É obrigatório ao Poder Judiciário submeter-se ao ordenamento jurídico brasileiro, diante da acolhida do controle da constitucionalidade das leis.

O que no momento vale enfatizar é o conflito de atribuições causados pelas correições do Poder Judiciário nas Delegacias de Polícia. Essa anomalia macula o cargo dos Delegados de Polícia. Cumpre ainda considerar que as atividades policiais, geralmente embaraçosas e difíceis, sempre hão de ser facilitadas por todos e não dificultadas, máxime nos casos mais urgentes

A Constituição Federal estabelece que compete à União (através de normas gerais) e aos Estados (através de normas suplementares) legislar concorrentemente sobre organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis (artigos 21, XIV; 22; 24, XVI; 144, § 7º). Essa é mais uma justificativa da inviabilidade das correições do Poder Judiciário, sem o caráter jurisdicional.

Não há a menor dúvida de o Poder Judiciário invadir as funções da Polícia Civil em suas correições nas Delegacias de Polícia.

Trata-se de uma invasão de função absoluta. Ocorre em atribuições de distintos órgãos funcionais. Portanto, a incompetência é irremediável, tornando-se os atos inválidos por infringirem o princípio fundamental da organização política, como a divisão de funções e poderes públicos por entidades, que se controlam reciprocamente. (Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, Forense, 5ª ed., pág. 68)

Vê-se, pois o seguinte paradoxo:

a) - A tramitação dos inquéritos policiais – instrumento de polícia judiciária - é limitada por prazo de prévia apreciação do Poder Judiciário.

b) - Por sua vez, o Juiz Corregedor durante a correição em Delegacia de Polícia, não tem competência para fiscalizar o trabalho dos demais magistrados das Varas Criminais.

Então, cabe a seguinte indagação: a correição do Judiciário tem qual finalidade?

Indubitavelmente há comprovada ineficiência na correição do Poder Judiciário nas Delegacias de Polícia. Além disso, é demasiadamente constrangedora para a Autoridade Policial, com indicativo de ato arbitrário.

No Estado de Direito o poder público sujeita-se à lei e ao direito, coibindo-se a prática de qualquer ato administrativo arbitrário ou abusivo. Sob inspiração da ideia de Estado de Direito seria possível fixar preceitos que protegem direitos dos indivíduos, limitando o poder das autoridades. (Odete Medauar, Direito Administrativo Moderno, 12ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, pág. 27)

A atividade correcional no interior das Delegacias de Polícia pressupõe-se tratar-se de atividade administrativa e não jurisdicional. Portanto, trata-se de ato administrativo desmotivado e sem nenhuma finalidade pública. Não há ato administrativo que não seja submisso à realização da finalidade pública. (Arruda Alvim, Direito Processual Público – 1ª ed. – Malheiros – pág. 233

Robustece esse escorreito entendimento a lição de Caio Tácito no sentido de inexistir ato administrativo sem finalidade pública ou desviada de sua finalidade específica. (Desvio de Poder em Matéria Administrativa, pág. 18).

É ausente da legislação vigente a normatização sobre o Delegado de Polícia ser reconhecido como auxiliar do Judiciário. Igualmente, de que os atos de polícia judiciária devam ser fiscalizados administrativamente.

Qualquer ato administrativo regulamentando essas matérias torna-se ilegal, inconstitucional e nulo. Isso em razão de as normas dos órgãos judiciários (juizes e tribunais) não ter força obrigatória ampla, mas somente aos seus funcionários.

A pretendia conceituação comparando os Delegados de Polícia como auxiliar do Judiciário não se fundamenta nos motivos que determinam o preceito, as suas reais necessidades, o princípio superior que lhe deram origem e o fim visado pela lei.

A Constituição Estadual e o Código Judiciário do Estado de São Paulo normatizam somente o controle sobre atos e serviços auxiliares da justiça e da polícia judiciária sob o aspecto da legalidade perante o Juiz Titular da Vara Criminal (corregedoria permanente) durante o trâmite do inquérito policial.

Há o errôneo entendimento do Poder Judiciário sobre o que e de qual forma deva fiscalizar na atividade correcional. Indiscutivelmente o Poder Judiciário não cria a lei, mas somente aplica a lei.

E, sendo um dos princípios da técnica legislativa o rigor da terminologia na linguagem jurídica, verifica-se a ausência de indicação envolvendo os integrantes da Polícia Civil como órgão auxiliar da justiça ou a fiscalização das funções de polícia judiciária internamente.

A atribuição para proceder às correições internas em Delegacias de Polícia é do Poder Executivo, através da Secretaria de Segurança Pública e Delegacia Geral de Polícia (C. F. art. 144, § 6º). Externamente, normatiza o Código de Processo Penal o rol de funções de polícia judiciária (arts. 4º a 23).

A polícia judiciária não é subordinada ao Poder Judiciário e, da mesma forma, submete-se às normas processuais penais, bem como ao princípio hierárquico afeto ao Poder Executivo. Vê-se, pois a polícia judiciária.

A polícia judiciária, na visão de Fernando da Costa Tourinho Filho, tem a finalidade de investigar o fato infringente da norma e quem tenha sido o autor, colhendo os necessários elementos probatórios a respeito, com uma série de diligências, tais como: buscas e apreensões, exames de corpo de delito, interrogatórios, depoimentos, etc”. (Processo Penal, 1º vol., 9º ed. pág. 158/162/163)

Enquanto para Pimenta Bueno a polícia judiciária indaga de todos os suspeitos, recebe os avisos, as notícias, forma os corpos de delito para comprovar a existência dos atos criminosos, sequestra os instrumentos do crime, colige todos os indícios e provas que pode conseguir, rasteia os delinquentes, captura-os nos termos da lei e entrega-os à Justiça Criminal, juntamente com a investigação feita, para que a Justiça examine e julgue maduramente. (Processo Penal Brasileiro, p. 11)

Conforme Júlio Fabbrini Mirabete as autoridades policiais são as que exercem a polícia judiciária, que têm o fim da apuração das infrações penais e da sua autoria. (Atlas, pág. 60/61, 1997)

A polícia judiciária abrange várias modalidades de procedimentos inerentes ao processo penal e, por isso, se desconhece a objetividade da atividade correcional no interior da Delegacia de Polícia.

A única certeza, porém, é a de que os procedimentos administrativos da polícia judiciária estão sendo duplamente fiscalizados pelo Judiciário (jurisdicional e administrativamente).

Inegavelmente a polícia judiciária auxilia o Poder Judiciário na busca da verdade real, mas sem a subordinação e a subserviência. E, o Delegado de Polícia tem o direito líquido e certo de responder pelos atos e funções das atividades atinentes à polícia judiciária. É o responsável pelas suas funções, atribuições e presidência.

Evidentemente, o Colendo Conselho Superior da Magistratura e a Egrégia Corregedoria Geral de Justiça não têm competência para legislar sobre atos de polícia judiciária e atividades dos integrantes da Polícia Civil.

Na sábia observação dos doutrinadores as limitações servem precipuamente ao princípio da segurança jurídica, sem o que, estabelecer-se-ia o caos com a invasão dos diversos agentes na esfera de competência uns dos outros.

Portanto, a Assessoria Técnica da Polícia Civil e a Consultoria Jurídica da Pasta precisam posicionar-se contrariamente a essa ilegalidade praticada pelo Judiciário. Sem dizer, contudo, das iniciativas jurídicas pertinentes a ADPESP.