BO É DESNECESSÁRIO EM CASOS NÃO PENAIS
Plantões policiais lotados, na sua maioria com apenas um Escrivão
de Policia responsável para o atendimento de toda uma população de moradores de
bairros diversos nos arredores dos Distritos Policiais.
Entre os registros de roubos, furtos, homicídios, há os
famigerados “papeis bala”. Registros que os Escrivães são obrigados a registrar
que nada tem a ver com o ambiente policial. Boletins de Ocorrência que
desgastam esse profissional atrasam o atendimento de ocorrências
verdadeiramente criminais. As autoridades policiais na sua grande maioria,
certamente por temor, abrem seus braços e abraçam todos os relatos que surgem
nos plantões. Obviamente, este será visto como um profissional empenhado, que
atende bem toda a população, contudo quem sofrerá o desgaste? Quem de fato
trabalhará? Com certeza é o Escrivão.
Nesse importante instrumento, deveria existir um melhor critério
para o que de fato deve ser considerado de importância e gravidade para seu
registro.
Mas como certa vez um delegado se auto-denominou “delegado de
papel” e são estes que determinam o que será digno de registro, então, o que se
pode esperar?
Se o Boletim de Ocorrência já se tornou algo vulgarizado e
corriqueiro e pretende-se que nenhum “cliente” que compareça aos Distritos
Policiais não saia satisfeito carregando consigo um papel qualquer, então
que os plantões policiais funcionassem como as agências dos Correios, com
vários atendentes que fizessem o registro de absolutamente tudo.
Lembro novamente que os “administradores” deste órgão devem ter
consciência de que para o atendimento de todos os fatos que ocorrem em
determinado bairro ou cidade, com duzentos, trezentos habitantes, há apenas um
funcionário responsável pelo seu atendimento. E este é o Escrivão de Policia,
que acaba sendo obrigado a suprir a deficiência de outros órgãos ou a preguiça
de outros profissionais.
Abaixo, texto extraido da página do “Consultor Juridico”
“Muitos já ouviram a recomendação: “vá à delegacia e
registre um B.O. de preservação de direitos”. A situação é bastante comum, ao
menos em delegacias do estado de São Paulo, em que o cidadão ali comparece e
solicita o registro de um boletim de ocorrência de “preservação de direitos”,
noticiando fato penalmente atípico, isso facilmente perceptível pelo policial
responsável pelo atendimento, mesmo que ele não tenha formação em Direito.
São vários os casos. Há o da mulher que quer sair de
casa, em preparação a uma posterior separação judicial, que pede o B.O. para
que não seja acusada, futuramente, de “abandono do lar”; tem o do pai que quer
ter o filho menor em sua companhia num final de semana (sem provimento judicial
concedendo tal direito) e é impedido pela genitora, que alega alguma
circunstância impeditiva; há o estudante que não viu respeitado o direito à
meia-entrada em um show musical; uma pessoa que esperou por longo tempo em fila
de banco; o assinante que teve a linha telefônica cortada sem motivo, e por aí
vai. Os exemplos são muitos e os casos serão retomados nesse artigo.
O registro desses fatos em delegacias de polícia,
longe de demonstrar desconhecimento da lei por parte dos servidores que o
fazem, evidenciam sua disposição em atender a população, suprindo a carência de
outros órgãos estatais e, não raro, proporcionar, desnecessariamente, um ponto
de partida para que advogados ingressem com ações judiciais.
De qualquer forma, é razoável considerar que o
registro de fatos penalmente atípicos refoge completamente da esfera de
atribuições da Polícia Civil. Com efeito, segundo lição de Fernando da Costa
Tourinho Filho, “a função precípua da Polícia Civil consiste em apurar as
infrações penais e a sua autoria. Sempre vigilante, pondera Pimenta Bueno, ela
indaga de todos os fatos suspeitos, recebe os avisos, as notícias, forma os
corpos de delitos para comprovar a existência dos atos criminosos, sequestra os
instrumentos dos crimes, colige todos os indícios e provas que pode conseguir,
rastreia os delinquentes, captura-os nos termos da lei e entrega-os à Justiça
Criminal, juntamente com a investigação feita, para que a Justiça examine e
julgue maduramente (Processo Penal 1, 27ª ed. Saraiva, 2005, p. 192.)”.
Os esforços e recursos — humanos e materiais — da
Polícia Civil devem ser canalizados nesse sentido. Jamais ocupar-se em
registrar episódios — muitos dos quais retratando miuçalhas e quizilas sem
importância — que não dizem respeito às suas atribuições.
O Manual de Polícia Judiciária da Polícia Civil do
estado de São Paulo (2000) esclarece que boletim de ocorrência “é o documento
utilizado pelos órgãos da Polícia Civil para o registro da notícia do crime, ou
seja, aqueles fatos que devem ser apurados através do exercício da atividade de
Polícia Judiciária” (p. 73) e “presta-se fielmente à descrição do fato,
registrando horários, determinados locais, relacionando veículos e objetos,
descrevendo pessoas envolvidas, identificando partes etc” (p. 74).
O próprio manual, no entanto, reconhece e admite a
lavratura dessa “espécie” de boletim de ocorrência, ressaltando: “Além dessa
função principal, o boletim de ocorrência é utilizado largamente para registros
de fatos atípicos, isto é, fatos que, muito embora, não apresentem tipicidade
penal — não configurando, portanto, infração penal —, merecem competente
registro para preservar direitos ou prevenir a prática de possível infração,
sendo conhecidos, consuetudinariamente, pela denominação de boletim de
ocorrência de preservação de direitos” (p. 74).
Há, nisso, um desvirtuamento da função policial e, conseqüentemente,
considerável perda de tempo e gasto inútil de material para serviços que
deveriam ser executados por outros órgãos e profissionais.
Retomando os exemplos dados inicialmente, têm sido
inúmeros os casos registrados em boletins de preservação de direitos:
1) Candidatos a concurso público que chegam no local
da prova dentro do horário estipulado no edital e encontram os portões já
fechados, sendo impedidos de entrar e fazer a prova. Ora, o B.O. nesse caso é
dispensável. Basta que os candidatos firmem declaração, sob as penas da lei (e
a falsidade, aí, terá como conseqüência as penas do artigo 299 do Código Penal)
e fotografem os portões fechados (hoje, os aparelhos celulares podem cuidar bem
disso, mostrando a data e o horário na foto). Até porque a autoridade policial,
por mais boa vontade que tenha, não poderá obrigar os responsáveis pelo
concurso a reabrir os portões ou tomar qualquer outra providência imediata. A
questão deverá ser discutida junto à Comissão de Concurso ou mesmo por
representação ao Ministério Público, o qual dispõe de mecanismo próprio para
apurar eventual ofensa às regras do concurso público;
2) Funcionários de hospital que comparecem a uma
delegacia e noticiam evasão voluntária do paciente. Já experimentaram perguntar
a razão para isso? A resposta virá: “é para eximir o hospital de qualquer
responsabilidade”. Mas o B.O. vai eximir o hospital? Eventual responsabilidade
(nesse caso, geralmente, a civil) será discutida em ação própria e um simples
livro de registro de ocorrências do hospital, constando o fato (e com nome e
qualificação de eventuais testemunhas) já se presta para esclarecer o ocorrido.
É certo, sim, que nem o B.O. nem o registro nos arquivos do hospital impedirão
que se discuta a responsabilidade da entidade. Evidentemente que, no caso de arrebatamento
forçado de paciente ou mesmo seu desaparecimento, a Polícia deverá ser
comunicada;
3) Cidadãos que registram boletim “contra” a
Prefeitura, reclamando da existência de “lombadas” irregulares no perímetro
urbano. Ora, em situações tais, bastaria que se fotografasse esses obstáculos e
que uma representação fosse endereçada ao Ministério Público, com indicação de
suas localizações, para que as providências em favor do interesse coletivo
fossem adotadas. Muito simples. Na comarca de Junqueirópolis/SP, v.g., um termo
de ajustamento de conduta firmado entre Ministério Público e Prefeitura
Municipal acabou com o problema (Inquérito civil 16/99);
4) Enfermeira que registra boletim por conta da
ausência de médico no hospital em que ela trabalha, em determinado período.
Ora, bastaria comunicação verbal ou mesmo um relatório do caso à Provedoria e à
Administração do hospital ou, ainda, registro em livro do próprio hospital e,
no primeiro dia útil seguinte, uma representação ao Conselho de Medicina, sem
prejuízo de, em se tratando de hospital público, denúncia na secretaria de
saúde respectiva. Evidentemente, se essa ausência implicasse em omissão de
socorro para determinado paciente ou mesmo no agravamento do estado de saúde —
com óbito, inclusive — seria, sim, caso de comunicação à Polícia, mas não para
lavratura de mero boletim de “preservação de direitos”;
5) No caso de perda ou extravio de documento, não se
vislumbra justificativa razoável para registrar boletim de ocorrência. Se a
finalidade do B.O. é a de embasar o pedido de 2ª via, basta que o titular do
documento subscreva uma declaração de extravio. Vale lembrar que a falsidade
nele porventura contida pode sujeitar o declarante a responder pelo crime de
falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal);
6) Boletim de ocorrência de “preservação de
direitos” para subsidiar reclamação em Procon municipal. Ora, a partir do
momento em que o consumidor comparece a uma unidade do Procon reclamando
violação a um direito previsto na legislação consumerista, basta que se
registre, em formulário ou requerimento próprio, sendo demais exigir que ele
apresente o B.O. Obviamente que, em se verificando que a violação pode, ainda
que em tese, caracterizar ilícito penal, será o caso de enviar cópia do
registro do Procon à autoridade policial para as providências de sua alçada.
Em síntese, o boletim de ocorrência, por si só, não
preserva o cidadão de nada. Mesmo considerando que, com o seu registro, o
delegado de polícia toma conhecimento do fato, isso em nada favorece o interessado,
exceto se a situação configurar infração penal. É bem possível que o fato
noticiado pelo interessado e que motivaria, a seu pedido, a lavratura do B.O.
de preservação de direitos, esconda um fato penalmente típico. Porém, há que se
perquirir minudentemente sobre todas as circunstâncias do episódio narrado para
apurar eventual indício da ocorrência de prática delituosa ou contravencional.
Em se verificando tal situação, a natureza do boletim de ocorrência será outra,
dispensando-se o título de “preservação de direitos”. Seria o caso, por
exemplo, de pessoa que comparece em unidade policial informando que descobriu
ser sócio de uma sociedade empresária, sem que jamais tivesse feito qualquer
tratativa nesse sentido. É possível antever, na espécie, que tal indivíduo foi
vítima de um golpe. Há indícios de prática criminosa que exige uma
investigação; não se trata meramente de uma “preservação de direitos”. Em outra
situação, apesar de insistentes chamados da direção da escola, os pais não
comparecem para conversar sobre três consecutivos meses de ausência de criança
na escola. Ora, a providência reclamada não seria o “B.O. de preservação de
direitos”, mas um de abandono intelectual (para se apurar a responsabilidade
penal dos genitores) e isso, depois de feita a comunicação ao Conselho Tutelar,
para eventual aplicação de medidas protetivas, sendo certo que nem sempre a
evasão escolar de criança e adolescente implica na responsabilidade penal de
seus pais ou responsáveis.
Como bem salientou o magistrado trabalhista Ricardo
Artur Costa e Trigueiros, “o Boletim de Ocorrência (BO) é mera peça
informativa, lavrada a partir da notícia de prática delituosa levada
unilateralmente pela parte ao conhecimento da autoridade policial. Faz prova
apenas da notitia criminis, mas não do crime…” (conforme processo
02022-2002-444-02-00 da 4ª Turma do TRT da 2ª Região, publicada em 21 de março
de 2006).
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de
Santa Catarina decidiu que o boletim de ocorrência “é peça instrumental que
contém mera transcrição das informações prestadas pela vítima, mostrando-se sem
mais, dado com imprestabilidade eficacial probatória” (Apelação Cível nº
2006.029983-2, 4ª Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Monteiro Rocha), até
porque serão os elementos coligidos no inquérito que darão suporte a eventual
futura ação penal e, nas hipóteses legais, formarão o quadro probatório na
persecutio criminis in judicio.
O costume de certos profissionais ou repartições
pedirem ou exigirem que o civilmente lesado providencie o registro do tal B.O.
de preservação de direitos beira o comodismo ou a falta de conhecimento para
redigir uma notificação, uma representação ou uma simples declaração. Sem
contar que o submete a uma via crucis desnecessária.
De mais a mais, o direito de petição consagrado no
rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal não justifica o registro
desse tipo de boletim de ocorrência. Os direitos porventura lesados deverão ser
reclamados nas esferas competentes.
Letícia Franco de Araújo lembra que “o cidadão, para
que possa ser devidamente atendido, deve exigir das autoridades constituídas e
da iniciativa privada a desburocratização, a assunção por cada instituição do
papel que lhe cabe, e que cada órgão esteja realmente disponível para a realização
de suas funções a qualquer hora do dia ou da noite, haja vista o princípio
administrativo da continuidade do serviço público…”. E mais: “Não se pode
sobrecarregar de forma escandalosa uma instituição e ainda fazer sobre ela
recair a responsabilidade que outras tantas devem com ela dividir” (conforme
“Desvios de Função e Ilegalidades das Polícias”, Boletim IBCCrim, Ano 9, nº102,
Maio de 2001, p. 9).
A ata notarial, prevista no artigo 7º da Lei
8.935/94, que tem eficácia probatória, também pode produzir, com segurança, o
efeito que se pretende obter nas várias situações exemplificadas neste texto.
Com isso, a sociedade retira dos ombros dos valorosos policiais civis essa
tarefa que, salvo melhor juízo, não lhes cabe. A ata notarial é o instrumento
pelo qual o notário, com sua fé pública, autentica um fato, descrevendo-o em
seus livros. Sua função primordial é tornar-se prova em processo judicial. Pode
ainda servir como prevenção jurídica a conflitos, conforme Angelo Volpi Neto,
em “Ata notarial de documentos eletrônicos” — Jus Navigandi, Teresina, ano 8,
n. 369, 11 jul. 2004, disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5431.
Nem se diga que o registro de fatos penalmente atípicos
pela Polícia Judiciária demonstra o grau de comprometimento com os direitos da
população e a sua intenção de bem servi-la. Em verdade, a Polícia tem que se
comprometer com a função para a qual foi criada. Investigando, elucidando e
reprimindo crimes e prendendo seus autores: é dessa forma que ela se engrandece
e bem serve a sociedade.”
CLÓVIS MENDES
Oficial de Promotoria do Ministério Público de São
Paulo e bacharel em Direito
Encaminhado por Carlos Roberto [carlos.rsilva@itelefonica.com.br]