Disponível em: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1644897-15605,00.html Acesso em: 2 fev. 2011
30/01/2011
Nossas equipes atravessaram o país, e registraram flagrantes de descaso, de falta de estrutura e de tratamento desumano.
Nossa reportagem especial: o caos nas delegacias do Brasil. As equipes do Fantástico atravessaram o país, e registraram flagrantes de descaso, de falta de estrutura, de tratamento desumano. É um verdadeiro escândalo nacional.
“Desejava mais morrer do que ficar aqui dentro. Nesse sofrimento aqui, quero mais morrer”, conta um preso.
Olhando de perto, mais parece uma jaula, como se a gente estivesse em um zoológico. Uma situação nunca vista antes.
No interior do Maranhão, a “jaula” para seres humanos fica em uma delegacia. “Ela é destinada ao banho de sol e ao encontro de visitantes. Mas, na verdade, funciona como um depósito para colocar presos”, explica o presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Maranhão, Amon Jessen.
Em delegacias de São Paulo, o problema é outro. Para registrar um boletim, o cidadão perde muito tempo. Flagramos a imagem do cansaço. “Por isso que tanta coisa fica impune. Porque quem vai perder todo dia para poder registrar um boletim de ocorrência?”, reclama a diretora de escola Rosileide Guedes.
As equipes de reportagem passaram um mês inteiro preparando essa radiografia das delegacias brasileiras. Como é o atendimento? Como são as investigações?
Um fazendeiro, acusado de assassinato, deveria estar preso. A polícia não foi atrás dele. Mas a equipe de reportagem foi, e encontrou o sujeito em um bar, sossegado.
Para obter flagrantes como este, o Fantástico percorreu mais de três mil quilômetros, em cinco estados. Além de São Paulo, no Sudeste, e do Maranhão, no Nordeste; o Fantástico esteve em Goiás, no Centro Oeste e em Tocantins e no Pará, região Norte do Brasil.
A maior cidade do Brasil tem 93 delegacias. O Fantástico pergunta: “seis horas e meia para registrar um boletim de ocorrência?”. “Por causa de um roubo de celular?” reclama a operadora de telemarketing Ingrid Humberto.
A equipe de reportagem fez um teste. Foram ao Terceiro Distrito Policial, no Centro. O produtor do Fantástico diz que o pai, de 70 anos, teve os documentos roubados. São 16h30.
O produtor pergunta se está demorando muito. “Quatro horinhas, pelo menos. Ou volta no fim do dia, ou volta amanhã cedo”, responde o funcionário.
Em mais duas delegacias, respostas parecidas. Um funcionário empurra o serviço pra outro lugar: “Manda ele para a Delegacia do Idoso. Pode levar seu pai lá que é tranquilo”, indica o funcionário.
São quase dois quilômetros até o local. A Delegacia do Idoso funciona das 9h às 18h. Faltando meia hora para o fim do expediente, o atendimento já está suspenso. “Já fechou. Traz amanhã. Manda ele procurar amanhã”, diz um funcionário.
A equipe tentou em outra delegacia. Ela acompanhou em tempo real a conversa entre o atendente e o produtor dela. “O plantão já encerrou. Esse é o ultimo B.O.”, afirma um funcionário.
Faltando 15 minutos, eles não querem registrar o boletim de ocorrência: são 19h45. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, essa delegacia e mais 17 fecham em dias de semana às 20h. E não abrem sábados e domingos.
O repórter pergunta: “O que vocês acham de encontrar a delegacia assim fechada?”. “É um absurdo isso. A gente paga os nossos impostos para acontecer isso”, responde a enfermeira Maria das Graças.
No dia seguinte, às 16h, a equipe está de volta ao 3º Distrito, o primeiro lugar onde ela tentou registrar o roubo de documentos de um idoso.
“Aqui é complicado porque é região central. Na parte da manhã é sempre mais tranquilo. Pode trazer ele aqui na parte da manhã”, recomenda um funcionário do local.
Em outra delegacia, o funcionário não quer saber de trabalho. São 19h30. “Aqui, a delegacia fecha às oito horas da noite. Só que o sistema fecha um pouquinho antes. Deu 19h30, 19h35, já finalizou”.
Mentira. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o sistema de registro de ocorrências é informatizado e funciona 24 horas. “Não é culpa do policial civil que está de plantão, é culpa da administração. E eu assumo a responsabilidade agora porque é culpa minha. Eu tenho que dar as condições para que um plantão de Policia Civil seja adequado aos anseios de hoje”, esclarece o delegado-geral da Polícia Civil/SP, Marcos Carneiro.
Uma pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP coordenou um estudo sobre as delegacias feito em 2009 por uma organização internacional. Foram avaliados 235 distritos policiais de 11 cidades, sendo nove capitais.
O resultado: 69% - ou seja, 162 delegacias - foram reprovadas: prestam um serviço inadequado. “O prejuízo é para a população, que não tem um órgão a quem recorrer. O prejuízo é do estado, que não tem a confiança da população”, conta a cientista social Paula Ballesteros.
O Fantástico esteve em várias outras cidades e constatou a precariedade das delegacias. Em Tocantins, funcionam, no estado todo, segundo o Sindicato dos Policiais Civis, apenas cinco plantões à noite e nos fins de semana. E há um problema crônico de falta de delegados: 84 cidades não têm um delegado fixo.
A reportagem passou duas noites em um plantão policial em Araguaína, de 150 mil habitantes. A delegacia não tem mais lugar para nenhum preso. “Não cabe mais não. Tem oito dentro. Não cabe de jeito nenhum”, explica um funcionário.
Foi também à Xambioá, 11 mil moradores. O distrito só abre durante o dia. Um funcionário recebe a equipe às 14h30. Quando perguntado sobre o delegado, ele diz: “Não chegou ainda não. Já era para ter chegado”.
Em julho de 2010, era um preso quem tomava conta de uma delegacia. O repórter pergunta: “Você é detento? Não tem policial nenhum aí, não?”. “Tem não, agorinha não”, responde o homem.
A Secretaria de Segurança reconheceu que nenhuma delegacia de Tocantins está em condições satisfatórias. E diz que já começou uma reestruturação.
O Fantástico chega ao estado do Pará. Em São Geraldo do Araguaia - 25 mil habitantes – nove pessoas foram encontradas à espera de atendimento. Aparentemente, não há policiais na delegacia.
A equipe foi duas vezes até lá. “Será que, se eu bater ali, aparece alguém?”, pergunta o repórter. Depois de uma hora e meia, o delegado aparece. “Teve uma informação de que o senhor não estava aí”, diz o repórter. “Eu estou aqui na delegacia, só que estou no gabinete. Aqui é que está fechado, o atendimento do escrivão”, informa o delegado.
A Secretaria de Segurança do Pará considera normal que funcionários se revezem no atendimento. Já no Maranhão, uma delegacia fica em Miranda do Norte, com 24 mil habitantes. Um cenário de total abandono.
Às 17h não tem nenhum policial civil. Toda vez que tem alguma ocorrência na cidade, o investigador precisa sair da delegacia e fechar as portas.
E, mesmo se houvesse policial no prédio, o atendimento seria precário. O computador não funciona. Na verdade, só existe o monitor, não tem mais nada. E o local tem muita sujeira.
Há 27 presos no local. A quantidade de mosquito, de sujeira é grande. O cheiro é muito forte. Os detentos, entre eles assassinos e assaltantes, só não fogem porque não querem. No local deveria haver cadeados, mas não tem. Tem só em um lugar. É possível ver que não é um cadeado reforçado.
Outra carceragem fica na delegacia de Santa Inês - cidade maranhense de 78 mil habitantes. Na parede, o aviso: "bem-vindo ao inferno". Homens e mulheres cumprem pena no mesmo prédio. Elas ficam em uma sala improvisada como cela. Como não há banheiro, as mulheres usam um balde.
“As delegacias de policia servem apenas de depósito de pessoas humanas e, infelizmente, geralmente, saem piores do que entraram”, confessa Walter Nunes, do Conselho Nacional de Justiça.
E o que dizer quando o preso está do jeito que pode ser visto no vídeo? Fica na maior delegacia de Bacabal - cidade maranhense de 100 mil habitantes – a “jaula” mostrada no início dessa reportagem. Não tem água, não tem banheiro. Não tem teto e começa a chover. Sem opção, os presos ficam na chuva.
De manhã, os presos contam que o sofrimento durou a noite toda. “Agorinha, eu rezei para não chover mais. Se cair outra chuva aqui, Ave Maria, nós estamos mortos”, conta um preso, que não tem previsão de ir embora.
“É realmente uma situação que não é típica, que não deve ser constante e que realmente a gente precisa ver o que está acontecendo”, explica o secretario de Segurança do Maranhão, Aluísio Mendes.
Segundo o Ministério da Justiça, cerca de 57 mil detentos em delegacias em todo o país. O Conselho Nacional de Justiça afirma: distrito policial não é lugar de preso, e não só por causa da precariedade e do risco de fugas. “Na hora que tira o agente policial para guardar ou dar a guarda para pessoas que estão recolhidas, você inibe ou prejudica essa atividade investigatória”, conta Walter Nunes, do Conselho Nacional de Justiça.
A delegacia de Bacabal, onde a “jaula”foi encontrada, abriga outros 30 presos. A falta de higiene é tanta que os funcionários dizem criar uma jibóia, para que ela coma os ratos do local. Em um ambiente assim, como será o atendimento à população?
Ao ligar no telefone da delegacia, não funciona. Nem linha tem. “Não existe o atendimento, não existe a investigação. Às vezes, a policia consegue prender em situações ocasionais”, diz o presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Maranhão, Amon Jessen.
Elson da Silva, de nove anos, está desaparecido desde dezembro de 2009. A família mora em uma comunidade isolada no oeste do Maranhão. Um suspeito chegou a ser preso, mas o caso foi arquivado, sem solução. “O que eles dizem é que não podem fazer nada. Porque não têm prova. Tinha que ter ido atrás dessas provas no início, no começo”, diz a mãe de Elson, Solange Machado.
Um delegado foi o primeiro a investigar o desaparecimento. Sem saber que a conversa era gravada, tentou se explicar: “A nossa viatura não tinha condições de deslocamento, porque a gente tem uma viatura aqui que só transita dentro da cidade porque ela não tem condições de viagem”.
A viagem pelo Brasil continua. Em Goiás, foi flagrado de perto outras consequências da falta de estrutura da polícia. Alexandre Moura, 16 anos, é assassinado em Santo Antônio do Descoberto, cidade de 63 mil habitantes.
O Instituto Médico Legal que atende o município fica a 100 quilômetros, em Luziânia. São quatro horas e meia até o corpo ser retirado. “Já teria que ter recolhido. Isso ai é falta de humanidade. Isso é desumano”, diz a mãe de Alexandre, Sandra Helena da Silva Moura.
“Muitas vezes, os crimes ocorrem e não são feitos laudos justamente devido à ausência de profissionais”, conta o promotor de Justiça Ricardo Rangel.
A Secretaria de Segurança de Goiás fala em ações de emergência. “Nós temos o compromisso de aumentar a quantidade de veículos para possibilitar a diminuição do tempo de espera dos familiares ou das vitimas nos locais de crime ou de acidente”, informa o secretário de Segurança de Goiás, João Furtado de Mendonça Neto.
De Goiás, a equipe de reportagem volta ao Maranhão. Buriticupu tem 65 mil habitantes. Em 2007, a delegacia foi queimada em um protesto. Em 2011, um novo prédio deve ser inaugurado. Por enquanto, o distrito policial funciona em uma casa improvisada. Às 14h, a delegacia de Buriticupu está fechada. Não tem ninguém.
A consequência da falta de policiais está por todo lado. O repórter pergunta se lá se pode andar sem cinto. “É, por aqui todo mundo anda”, conta um motorista. E, quando o repórter pergunta o porquê de ninguém usar capacete, um motoqueiro responde: “Porque aqui não tem lei”.
José Amaro, trabalhador rural, 46 anos, foi assassinado em março do ano passado. A sobrinha chegou a levar o corpo para a porta da delegacia. Mesmo assim, a polícia maranhense não registrou o boletim, nem começou as investigações.
Portanto, pelo menos no papel, José Amaro continua vivo. O repórter pergunta: “E eles falavam por que você não podia registrar?”. “Porque eu só era a sobrinha. Precisava ser uma pessoa mais próxima da família”, explica a sobrinha.
A polícia diz que, para legalizar a situação, a sobrinha teria que ir a um cartório que fica a mais de 500 quilômetros de distancia. “Que justiça é essa? O momento que a gente mais precisa, não consegue”, desabafa.
O lavrador Gilberto Lima, de 27 anos tem seis filhos e foi assassinado em junho de 2008, também no Maranhão. Em abril de 2009, a justiça decretou a prisão do suspeito de ser o mandante do crime: Adelson Araújo, um conhecido fazendeiro de Açailândia e patrão da vítima.
Gilberto estava com os salários atrasados, dizem os parentes. “Já tinha cobrado ele já umas três vezes e ele não pagava”, conta o irmão da vítima.
Mesmo com a ordem judicial, a polícia não fez nada. Foi a equipe de reportagem que encontrou Adelson Araújo. O fazendeiro suspeito de ser o mandante do crime mora em um bairro na cidade de Açailandia. É um senhor que pode ser visto no vídeo, de calça jeans e camisa branca e que está de costas para a equipe.
Em um bar ao lado da casa dele, Adelson Araújo dá risada, distribui cumprimentos. Segundo a Secretaria de Segurança, a prisão não foi cumprida porque a polícia espera desde julho do ano passado autorização judicial para prender mais 10 comparsas do fazendeiro.
“Nós acreditamos que a prisão de apenas um membro da quadrilha vai complicar a apuração do crime em si”, explica o secretario de segurança/MA, Aluísio Mendes.
Depois que o Fantástico informou a localização do fazendeiro para a Secretaria de Segurança e para o Tribunal de Justiça, todas as prisões foram decretadas em um dia. Sexta passada, Adelson Araújo e os dois filhos dele finalmente foram presos. Eles também são acusados de envolvimento no assassinato de outro funcionário da família.
“Nessa região, qualquer passo que se dê na justiça é uma grande vitória. E isso claro que reflete na violência porque as pessoas também ficam com a sensação de impunidade”, diz Nonnato Masson, da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Maranhão.
Durante a apuração desta reportagem, o Fantástico esteve em 21 delegacias. Foram flagrados mais de 150 presos em condições precárias. E 20 vítimas de crimes reclamaram da falta de atuação policial. Todos os casos foram repassados às autoridades. “A vítima está sempre em uma situação dolorosa. Ela tem que ser bem acolhida”, completa Nonato Masson.
“É fundamental que o estado assuma de fato o seu papel que, na realidade, é proteger e zelar para que todo e qualquer cidadão tenha os seus direitos respeitados”, diz Milton Teixeira, do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos do Maranhão.