28 de ago. de 2011

POLÍCIA, "TOLERÂNCIA ZERO" E EXCLUSÃO


Disponível em: http://www.dantaspimentel.adv.br/jcdp5134.htm Acesso em: 28 ago 2011

Doutrina
Artigos diversos

POLÍCIA, "TOLERÂNCIA ZERO" E EXCLUSÃO
Benoni Belli
1. Introdução

O programa “tolerância zero” da polícia de Nova York se tornou uma espécie de referência mundial na luta contra o crime. Políticos e chefes de polícia, preocupados com o aumento desmesurado dos índices de criminalidade, tendem a invocar o exemplo da cidade de Nova York e seus métodos supostamente eficientes de combate à delinqüência. A peregrinação para conhecer de perto tais métodos tem sido constante desde meados da década de 90, quando a queda nos índices de criminalidade daquela cidade norte-americana passou a ser amplamente divulgada. Políticos brasileiros - especialmente governadores, mas também parlamentares, secretários de Estado e prefeitos - estão entre os mais assíduos visitantes.



Brasileiros e outros estrangeiros vão à Nova York em busca de soluções, partindo do pressuposto de que a “tolerância zero” (ou programa “qualidade de vida”, como preferem seus formuladores) já provou sua eficiência. Afinal, Nova York era conhecida como a “capital do crime” e, agora, seria uma das cidades mais seguras dos Estados Unidos. O conjunto de reformas e estratégias do Departamento de Polícia de Nova York representaria, assim, a prova de que uma polícia bem equipada e adequadamente gerida é capaz de reduzir a criminalidade violenta. A esperança de que a experiência nova-iorquina possa ser reproduzida em outros lugares anima os formuladores da política de segurança pública em todo o mundo.

A popularidade da “tolerância zero” no Brasil tem-se refletido no discurso de campanha de políticos e começa a fazer escola entre “estudiosos” da segurança pública. Não raro se utiliza o epíteto “tolerância zero” - ou “slogans” semelhantes - para demonstrar determinação no combate ao crime. Para alguns, trata-se tão-somente de mostrar que o Estado pode impor a lei e a ordem, desde que haja vontade política de não condescender, de mostrar pulso firme diante dos criminosos. Para outros, numa recepção mais elaborada da “tolerância zero”, o discurso político em prol da lei e da ordem deve ser sustentado por um substrato institucional, em termos de equipamentos, recursos humanos e planejamento estratégico.

As duas versões da recepção da tolerância zero no Brasil são na verdade complementares. Os políticos falam para as massas, exploram o medo crescente e o sentimento de terror causados pelos crimes violentos e por sua divulgação “ad nauseam” pelos meios de comunicação. Os técnicos da segurança pública, entusiasmados pela experiência de Nova York, tendem a falar para um público mais restrito. Procuram alcançar os operadores jurídicos, as elites governantes, os empresários e as classes médias, os quais, apesar de serem menos vitimados pelos crimes do que as classes desprivilegiadas habitantes das periferias e das favelas, se encontram igualmente aterrorizados e aparentemente dispostos a apoiar políticas mais assertivas.

Com efeito, a tolerância zero parece oferecer um cardápio de soluções que vem a calhar para os problemas brasileiros. O problema da violência urbana é reduzido a uma questão de polícia, não no sentido tradicional da repressão “ex post facto”, mas repressão aliada às novas estratégias de organização policial inspiradas em técnicas de gestão empresarial “pós-fordistas”. Baseada em uma criminologia conservadora como ponto de partida, a tolerância zero se afigura como uma nova forma de gerir o espaço urbano e as relações entre polícia e comunidade. Em vez da repressão pura e simples, a vigilância constante e a escolha de alvos preferenciais. No lugar de burocracias centralizadas, atribuição de responsabilidade aos distritos e aos policiais.

É necessário ter presente que, não obstante a propaganda em torno das políticas do Prefeito de Nova York, a tolerância zero tem sido contestada de diversas formas e por diferentes atores. Desde 1998, o programa tolerância zero tem sido crescentemente colocado em questão, a ponto de se falar em uma verdadeira crise de confiança no Departamento de Polícia de Nova York. No mundo acadêmico, há quem insista que outros fatores, independentes do programa de tolerância zero, seriam os verdadeiros responsáveis pela baixa nos índices de criminalidade. Organizações da sociedade civil, por sua vez, vêem em tal programa a causa principal do aumento da brutalidade policial, especialmente contra jovens negros e outras minorias.

Se nem tudo são rosas na política de segurança pública implementada pelo prefeito Rudolph Giuliani, pode ser útil perguntar as razões do sucesso e da popularidade da tolerância zero entre os brasileiros. A razão mais evidente pode ser o desconhecimento das falhas e dos “efeitos colaterais” da suposta panacéia da tolerância zero. Em meio ao clima de quase desespero, buscam-se soluções rápidas e remédios drásticos para os males que afligem a sociedade brasileira. A aparência de eficiência da tolerância zero nutre a esperança de que a tábua de salvação se encontra ao alcance da mão. A reprodução apressada do modelo do prefeito “durão” de Nova York encontra, assim, ambiente propício.

A falta de conhecimento, portanto, pode derivar da busca de respostas imediatas ao “clamor” popular ou de uma vontade deliberada de utilizar politicamente, como arma eleitoral e populista, o discurso da cruzada sem piedade contra o crime. Com vistas a desmistificar a aura de eficiência da tolerância zero, creio que é preciso começar pela descrição de seus elementos constitutivos e, em um segundo momento, apresentar a crítica aos seus pressupostos e resultados. Esses dois passos serão fundamentais para explorar a hipótese central deste ensaio: a recepção favorável da tolerância zero no Brasil tem menos a ver com sua suposta eficiência na redução dos crimes do que com sua eficácia simbólica no reforço de estereótipos correntes na sociedade brasileira.

A apropriação da tolerância zero no Brasil reforçaria a crença em uma determinada representação social do crime e do criminoso. O discurso pretensamente científico dos defensores da tolerância zero nomeia e classifica a realidade, contribuindo para a reprodução da configuração de relações sociais excludentes que prevalecem no Brasil contemporâneo. Haveria uma correspondência entre o discurso da tolerância zero e a ordem social brasileira, entre os enunciados daquele programa e o senso comum a respeito das formas de lidar com os problemas relacionados à criminalidade. Como diz Bourdieu, as representações que os agentes sociais fazem das divisões da realidade contribuem à realidade das divisões e das classificações.

A descrição dos elementos constitutivos da tolerância zero procurará realçar o papel de uma perspectiva criminológica que fornece o suporte teórico às políticas colocadas em prática em Nova York. Em segundo lugar, buscarei apontar as principais estratégias e reformas implementadas no Departamento de Polícia de Nova York com base sobretudo no testemunho de William Bratton, todo-poderoso Comissário de Polícia da cidade. Em seguida, apontarei os principais traços da crise na tolerância zero, com ênfase na contestação social de seus efeitos excludentes. A descrição da tolerância zero nos EUA e de suas críticas servirá para revelar aspectos que têm sido negligenciados no Brasil e, desse modo, ajudar a desvendar as razões de seu sucesso entre nós. Servirá também para sugerir a consolidação de uma certa visão de sociedade e de Estado em que a idéia de responsabilidade coletiva pela exclusão dá lugar à concepção de responsabilidade individual levada a seu paroxismo.

2. Teoria das Janelas Quebradas

O programa tolerância zero se baseia, em grande medida, na chamada teoria das “janelas quebradas” (“broken windows”). Essa teoria foi divulgada pelo famoso artigo de mesmo nome de autoria de James Q. Wilson em parceria com George Kelling e publicado em 1982 na revista norte-americana Atlantic Montly. O argumento principal dessa “teoria” é o de que uma pequena infração, quando tolerada, pode levar a um clima de anomia que gerará as condições propícias para que crimes mais graves vicejem. A metáfora das janelas quebradas funcionaria assim: se as janelas quebradas em um edifício não são consertadas, as pessoas que gostam de quebrar janelas assumirão que ninguém se importa com seus atos de incivilidade e continuarão a quebrar mais janelas.

O resultado seria um sentimento geral de decadência e desamparo em que a desordem social encontraria o terreno fértil para enraizar-se e gerar seus frutos maléficos. Ou seja, a violência urbana e os crimes graves seriam o último elo de uma cadeia causal em que pequenas infrações levam às formas mais graves de delinqüência. As pequenas desordens do cotidiano das grandes cidades seriam o embrião de patologias mais graves, as quais resultariam da leniência ou condescendência dos órgãos de segurança do Estado. Esses últimos, preocupados em resolver os crimes violentos, sobretudo homicídios, roubos e estupros, perderiam de vista a dimensão preventiva da luta contra as ofensas que afetam a “qualidade de vida”.

A teoria das “janelas quebradas” passou a ser objeto de discussões em vários institutos de pesquisa e centros voltados para reflexão sobre políticas públicas nos Estados Unidos. Um dos Institutos que popularizaram as idéias de Wilson e Kelling foi o Manhattan Institute, cujos seminários contavam com a freqüente presença de Rudolph Giuliani, antes de ser eleito Prefeito de Nova York. As palestras e seminários tinham por objetivo buscar alternativas de políticas de segurança pública que levassem em conta as preocupações da teoria das janelas quebradas. Não foi difícil imaginar um trabalho policial que procurasse reprimir as pequenas infrações do cotidiano, tais como as praticadas por pichadores (grafitti), lavadores de pára-brisas, ou mendigos do metrô.

Embora jamais tenha sido validada empiricamente, a teoria das “janelas quebradas” alcançou status de verdadeira varinha de condão. Sua aplicação passou a ser considerada, em muitos círculos, a resposta para os males da violência e da criminalidade nas grandes cidades. Tratava-se de recuperar a auto-estima dos moradores, erradicar as pequenas ofensas que contribuem para a decadência da ordem. Em outras palavras, seria necessário retomar o espaço público, que havia sido degradado pelas presença de uma escória de pequenos infratores prontos a assumir características mais violentas. O Estado deveria, portanto, aparelhar-se para cumprir sua função central da manutenção da lei e da ordem.

Por paradoxal que possa parecer, os mesmos advogados do Estado mínimo na área social defendem um Estado hipertrofiado em sua dimensão penal e repressiva. Para Loïc Wacquant, essas duas tendências concomitantes correspondem a um processo único: a destruição do Estado social e o fortalecimento do Estado penal refletiria um novo senso comum penal que visa à criminalização da miséria. Não à toa os principais alvos da teoria das “janelas quebradas” são os excluídos da economia capitalista, os não-consumidores, os remediados, enfim, aqueles que antes eram objeto do assistencialismo ou de políticas reabilitadoras e que hoje são considerados irrecuperáveis e, desse modo, devem ser “neutralizados”.

Típico dos defensores da teoria das janelas quebradas é a crença de que a repressão, se não resolve tudo, é a arma principal na luta contra a criminalidade. O aumento dos índices de criminalidade nas grandes cidades seria culpa, sob esse prisma, de uma atitude condescendente por parte do Estado, sobretudo aquela derivada da “ilusão” de que programas sociais poderiam prevenir o crime. O Estado de bem-estar da década de 60 e 70, longe de contribuir para a criação de uma sociedade ordeira, teria estimulado a passividade das classes mais baixas. O desmonte do Estado de bem-estar seria a via para recuperação da capacidade de iniciativa dos que se encontram na base da pirâmide social.

Assim como a responsabilidade pela situação de exclusão a que estaria submetida a parcela mais pobre da população deveria ser creditada às políticas que estimulam a passividade, do mesmo modo não haveria outra desculpa para a criminalidade senão uma espécie de degenerescência moral do indivíduo. Nesse diapasão, as raízes ou causas sociais do crime passam a ter peso secundário, posto que o real culpado é o indivíduo que não foi capaz de se adaptar às regras sociais vigentes. Um dos defensores da teoria das janelas quebradas na Inglaterra, Norman Dennis, ressalta que a miséria e o desemprego nos anos 30 era muito mais grave do que hoje e, no entanto, os índices de criminalidade eram muito mais baixos.

Pressuposto central da teoria das janelas quebradas é a crença nas causas individuais da criminalidade e a rejeição das chamadas causas sociais. O tipo de comparação feita por Dennis é sintomática dessa tendência. O argumento é simplificador, mas altamente eficaz: se hoje a situação é menos desesperadora do que durante a crise dos anos 30, por que razão os índices de criminalidade atuais são mais altos? E a resposta não menos simples: não é o desemprego ou a crise econômica ou quaisquer outras razões “sociais” ou coletivas que explicariam a propensão ao crime, mas a degeneração moral dos indivíduos, a decadência dos valores tradicionais da família, e, numa versão mais popular, “a falta de vergonha na cara” e a “vagabundagem”.

Mais adiante, ao tratar da crise do programa tolerância zero, voltarei a esse ponto. Por enquanto, basta assinalar que a teoria das janelas quebradas se insere em um movimento mais geral de responsabilização dos indivíduos e de valorização da irredutibilidade das diferenças. É como se os criminosos fossem indivíduos que “optaram” pelo caminho do desvio, tornando-se diferentes, possuídos que estariam por uma malignidade intrínseca e imutável. A única forma de evitar que o câncer se espraie por todo o tecido social seria erradicá-lo em sua fase inicial, no nascedouro, por meio da imposição da lei e da ordem, ou seja, pela linguagem da força. Do contrário, o pequeno tumor certamente passará por um processo de metástase, ameaçando a própria continuidade do corpo social.

3. Tolerância Zero

A teoria das janelas quebradas forneceu um verniz de respeitabilidade pretensamente científica às políticas que foram colocadas em prática pelo Prefeito de Nova York. Em 1994, o Prefeito Giuliani alçou o então chefe da polícia de trânsito, William Bratton, ao posto de Comissário de Polícia da cidade. Bratton foi o principal responsável pela aplicação na prática da teoria das janelas quebradas, procurando atacar as pequenas infrações do cotidiano que, a seu ver, afetavam negativamente a qualidade de vida da população ordeira e contribuía para o clima de “abandono” que estaria por trás dos crimes mais violentos. Para tanto, a estratégia de Bratton incluiu o aumento do contigente policial e a modernização dos equipamentos, a devolução de responsabilidade para os chefes de delegacias (precincts), e a implantação de um esquema informatizado de acompanhamento dos índices de criminalidade.

Antes de analisar o tipo de alvo escolhido pela polícia de Nova York em suas investidas contra o crime, vale a pena deter-se por alguns instantes no que o próprio Bratton denominou de “reengenharia” do Departamento de Polícia daquela cidade. A primeira grande medida, além do aumento do contingente e a injeção de recursos na compra de novos equipamentos, foi a descentralização. A estrutura altamente hierárquica, em que os chefes de delegacias só faziam o que lhes era demandado pelo Comissariado, foi radicalmente modificada. Cada delegacia passou a funcionar com mais autonomia, com mais responsabilidade, mas também com a clara obrigação de prestar contas regularmente dos resultados alcançados.

Para Bratton, era fundamental recuperar a auto-estima dos policiais, fazendo-os conscientes do papel importante que desempenhariam na sociedade. Ao buscar a descentralização e a devolução de responsabilidades, o Comissário de Polícia não deixou de premiar policiais mais jovens, entusiasmados com o papel central que passara a ser conferido à polícia. Durante a gestão de Bratton, procurou-se substituir os antigos chefes que poderiam ser empecilho à reorganização operada. Ao mesmo tempo, implantou-se uma sistemática de reuniões semanais de troca de informações entre a cúpula do Comissariado de Polícia e os chefes de delegacias. Tais reuniões tornaram-se a pedra-de-toque da estratégia de Bratton.

Foi durante as reuniões semanais que se implantou a chamada “Compstat” (sigla de “Comprehensive Computer Statistics”), ou seja, um sistema informatizado de acompanhamento da evolução dos índices de criminalidade. Gráficos com estatísticas de criminalidade eram projetados para os participantes, que, por sua vez, tinham oportunidade de partilhar experiências, discutir táticas empregadas e apresentar planejamento para lidar com problemas específicos. Os comandantes de delegacias eram estimulados a apresentar os resultados de seus esforços e compará-los com o planejamento que haviam apresentado anteriormente. Os casos de êxito e de insucesso eram, assim, discutidos entre todos os participantes.

Enquanto a descentralização propiciava a liberdade para os comandantes empregarem o contigente policial à sua disposição da forma que lhes parecesse mais apropriada, as reuniões semanais em torno da Compstat compelia os mesmos comandantes a prestar contas de seus esforços. A pressão por resultados era óbvia: a liberdade de ação e a confiança depositada no trabalho das delegacias precisava ser “retribuída” ou “honrada” com reduções visíveis nos índices de criminalidade, no aumento das prisões, em apreensões de armas e drogas. A idéia de produtividade e competitividade passava assim a fazer parte do universo policial. Tratava-se de aplicar à polícia o que já havia funcionado no campo da gestão empresarial.

De fato, a valorização do policial passava por sua capacidade de inovar e aumentar a produtividade da “delegacia-empresa”, a qual precisava dar “lucro”. Em vez de uma burocracia esclerosada, Bratton procurou fundar uma estrutura ágil, voltada para a obtenção de resultados, capaz de se adaptar à natureza cambiantes da demandas a ela endereçadas. A lógica do lucro e da gestão empresarial parecia, assim, cair como uma luva. Era a melhor forma de dar as respostas que a sociedade solicitava: uma polícia “moderna”, com capacidade de prever os problemas, antecipar-se e, desse modo, prevenir a prática de crimes. Dito de outro modo, seria uma polícia capaz de renovar seus próprios métodos por meio de uma espécie de controle de qualidade estimulado pelas reuniões da Compstat.

Em termos práticos, a estratégia de Bratton, apesar da promessa de que os crimes violentos continuariam a receber atenção, enfatizou as infrações relacionadas com a “qualidade de vida”. O Comissário colocou em prática em toda a cidade de Nova York o que havia feito em relação ao policiamento do metrô. Como chefe da polícia de trânsito, Bratton aumentou de forma dramática o número de policiais nas estações de metrô e procurou prender mendigos que freqüentavam as estações e reprimiu a prática de “pular roletas”. A presença ostensiva da polícia e o apoio da mídia valeu a Bratton a fama de ter restaurado a ordem em um dos espaços públicos mais degradados da cidade.

Aos olhos da mídia e de boa parte da população, o homem que deu “jeito” no metrô, conhecido por sua decrepitude e por ser moradia de ratazanas, certamente lograria importantes vitórias em outros campos. A prioridade de Bratton, logo depois de assumir o Cargo de Comissário de Polícia, foi o de erradicar a prática de “lavação de pára-brisas”. De forma semelhantes aos “cuidadores de carros” no Brasil, os lavadores de pára-brisas prestavam um serviço sem serem solicitados e depois intimavam os donos de automóveis a pagarem pelo trabalho. Os lavadores de pára-brisas de Nova York atacavam sobretudo em semáforos e eram considerados pouco “amigáveis”.

Depois de eliminar o problema dos lavadores, os alvos foram os sem-teto que haviam improvisado moradias debaixo das pontes Williamsburg e Brooklyn. Outros alvos incluíram o recolhimento compulsório dos mendigos para abrigos da prefeitura, a maioria localizados fora da área central de Manhattan, os pichadores de muros, a prostituição e a pornografia, e os alunos “gazeteiros”. Em relação a esses últimos, a polícia passou a perseguir os alunos que “matavam aula” para dedicar-se ao ócio ou a alguma atividade de lazer. Os gazeteiros foram considerados fontes de futuros problemas mais sérios e passaram a ser alvo de um esforço concentrado da polícia, em cooperação com diretores de escolas e o apoio da mídia. As operações “corretivas” consistem basicamente em prender os gazeteiros, levá-los para delegacias por algumas horas e comunicar pais e diretores de escola.

Mas o programa tolerância zero não funcionaria se permanecesse limitado ao âmbito policial. As práticas policiais introduzidas por Bratton e Giuliani refletem, em grande medida, uma tendência mais geral de hipertrofia do sistema penal norte-americano. O aumento constante da taxa de encarceramento nos EUA é uma outra faceta, complementar à tolerância zero, desse processo de endurecimento nas políticas repressivas. O grande argumento dos defensores das tolerância zero é o de que, não obstante eventuais excessos em casos isolados, o programa provou ser efetivo, tendo sido responsável pela redução dos índices de criminalidade. Segundo Bratton, entre 1994 e 1998, os crimes violentos em Nova York foram reduzidos em 38%, sendo que somente os homicídios sofreram declínio de 51%.

4. Crise de Confiança no Departamento de Polícia de NY

Após sua passagem pelo Comissariado de Polícia, William Bratton tornou-se consultor internacional, uma espécie de “globetrotter” policial que viaja o mundo a divulgar os resultados estupendos alcançados na cidade de NY. O mais curioso, contudo, é que a fama da tolerância zero se deve sobretudo a uma bem construída estratégia de “marketing”. Resumindo os argumentos de criminologistas de diversas tendências, Christian Parenti assinala que muitas explicações para a redução da criminalidade passam ao largo das estratégias policiais. A baixa nos crimes seria resultado de um coquetel de fatores: a diminuição do número de jovens (que constituem a maioria dos delinqüentes); a queda acentuada na taxa de desemprego; a estabilização e exaustão do mercado de “crack”; relatórios falsos de policiais sobre a ocorrência de delitos; e até os invernos mais rigorosos.

Não é preciso ir tão longe na especulação sobre as causas da redução da criminalidade para contestar a eficiência da tolerância zero. Basta ressaltar alguns dados básicos sobre índices de criminalidade: a) os índices de criminalidade de NY estavam em queda havia três anos quando Giuliani iniciou seu mandato, não sendo portanto uma fato totalmente novo; b) a baixa nos índices de criminalidade foi um fenômeno observado no país inteiro, e não privilégio de Nova York; c) índices semelhantes aos alcançados em Nova York foram obtidos em várias cidades sem que se tenha feito uso de táticas do tipo tolerância zero.

De acordo com dados coletados pelo criminologista Alfred Blumstein da Universidade Carnegie Mellon de Pittsburgh (EUA), de 1991 a 1998 a taxa de homicídios caiu 76,4 % em San Diego, 70,6% em Nova York e 69,3% em Boston. O curioso é que as três cidades empregaram estratégias bem diferentes. Enquanto Nova York enfatizou as políticas de “tolerância zero”, San Diego foi pioneira no policiamento comunitário e Boston procurou envolver líderes religiosos na prevenção de crimes. Outras cidades importantes também tiveram quedas acentuadas na taxas de homicídios no mesmo período sem que qualquer estratégia coerente tenha sido implementada: 61,3% em Houston, 59,3% em Los Angeles e 52,4% em Dallas.

Os argumentos contrários à tolerância zero, além de apontar a fragilidade da crença em sua suposta eficiência, procuram enfatizar seus efeitos deletérios. Entre 1994 e 1998, constatou-se um aumento de cerca de 62% no número de queixas de brutalidade policial encaminhadas à Junta de Revisão de Queixas da cidade (“Civilian Complaint Review Board”). A filosofia da tolerância zero estimulou a retórica da guerra e as demonstrações espetaculares de força, o que resultou em um maior número de choques entre policiais e civis. Ao mesmo tempo, sob a pressão de obter resultados, alguns policiais passaram a forjar relatórios, de modo a desqualificar a gravidade de alguns crimes não resolvidos e maquiar as estatísticas. Roubos violentos podem se transformar em furtos simples, e certos homicídios facilmente se transmutam em suicídio.

Alguns episódios emblemáticos de brutalidade policial foram responsáveis por um abalo considerável na confiança depositada no Departamento de Polícia de Nova York. Entre os vários casos, sobressaem o de Abner Louima, internado em um hospital com hemorragia interna após ser sodomizado com um cassetete e apanhar durante várias horas, e o de Amadou Diallo, morto no vestíbulo de seu prédio cravado por 19 das 41 balas disparadas em sua direção. Ambos os casos causaram comoção na cidade e colocaram em evidência a opção preferencial da polícia pelo ataque a representantes de minorias, em especial jovens negros e latinos. De acordo com uma pesquisa publicada pelo jornal “New York Daily” e citada por Wacquant, 80% dos jovens negros e latinos da cidade já haviam sido presos ou revistados pelo menos uma vez pelas forças de segurança.

As organizações da sociedade civil passaram a organizar demonstrações e passeatas para denunciar o caráter excludente das práticas policiais do Prefeito Giuliani. A principal fonte de reclamações foi a unidade especial de combate ao crime de rua (“Street Crime Unit”), a menina dos olhos do novo Comissário de Polícia Howard Safir. Essa unidade, cujo lema é “we own the night” (somos os donos da noite), consiste em grupos de policiais a paisana que patrulham os bairros considerados mais críticos a procura de armas e drogas. O fato de não usarem uniforme é proposital para garantir o “efeito-surpresa”. No entanto, a dificuldade de identificação desses policiais como agentes da ordem foi responsável por mal-entendidos que acabaram em tragédias, como no caso de Amadou Diallo.

Por paradoxal que possa parecer, até William Bratton passou a criticar o Departamento de Polícia de Nova York, sob o argumento de que, uma vez reduzidas as taxas de crime, as táticas deveriam ter mudado. O policiamento agressivo já não seria mais necessário e sua continuidade apenas minaria a confiança depositada pela população nos policiais. Depois de garantir a pacificação, seria o momento de superar as tensões raciais e estabelecer vínculos entre a polícia, líderes comunitários e políticos. Essa crítica revela, além de eventuais rusgas pessoais entre Bratton e o Prefeito Giuliani, a necessidade de se dar resposta a uma população que protesta e se mobiliza. Bratton não explica, contudo, por que não mudou as táticas do Departamento enquanto era seu Chefe, apesar das reduções nas taxas de crimes violentos observadas naquele período.

Sobre o Departamento de Polícia de Nova York pesa a grave acusação de praticar o que os americanos chamam de “race profiling”. Ou seja, de escolher os alvos de sua atenção pela cor da pele. O principal método utilizado pela “Street Crime Unit” em suas investidas pela noite em bairros como o Bronx e outras áreas “mal-afamadas” é o “stop and frisk” (parar e revistar). Há uma clara percepção de que os policiais preferem revistar os negros e imigrantes, tidos como naturalmente mais propensos ao crime. A ênfase na tolerância zero, contudo, mascara esse tipo de preconceito, visto que se utiliza a justificativa de estar atuando nos bairros mais violentos. Esse argumento ignora o fato de que um policiamento eficaz depende, em última instância, da criação de laços de confiança com a comunidade.

A ênfase na repressão aos jovens “gazeteiros” também tem gerado críticas. Descobriu-se que muitas vezes os policiais se postam nas imediações, quando não em frente às escolas. Dessa forma, prendem e levam para as delegacias os alunos que chegam atrasados. Essa prática tem levado os retardatários a preferir perder o dia de aula do que correr o risco de ser apanhados a caminho da escola. Os policiais, por seu turno, parecem inclinados a agir desse modo para mostrar serviço. Afinal, quanto mais prisões efetuarem maiores são as chances de serem reconhecidos como produtivos. A lógica do lucro e da “delegacia-empresa”, parte integrante da tolerância zero, revela sua inadequação ao trabalho policial no caso dos alunos gazeteiros (a exemplo do já mencionado estímulo a forjar boletins de ocorrência).

Outra questão igualmente séria é que a tolerância zero tende a jogar nas malhas da justiça criminal um número cada vez maior de pequenos delinqüentes, os quais acabam voltando para as ruas sem que qualquer esforço adicional de mudança de suas condições de vida seja empreendido pelo poder público. Na verdade, a proporção dos que voltam para as ruas, mesmo quando presos por crimes menos graves ou contravenções, tende a diminuir no curto e médio prazos. Isso porque, não obstante a queda nos índices de criminalidade, tem-se verificado um endurecimento nas penas (penas mais pesadas para os mesmos crimes) e uma ampliação do leque de ofensas passíveis de detenção.

Como já foi dito, esse fenômeno de hiperinflação carcerária, que a tolerância zero apenas vem reforçar, transcende as práticas policiais. É uma tendência mais geral que atinge os Estados Unidos como um todo. Segundo dados de Wacquant, todos Estados norte-americanos, com as exceções do Maine e de Kansas, sofreram um aumento da população encarcerada superior a 50% entre 1986 e 1996. Em duas décadas, os EUA testemunharam a quadruplicação de sua população de prisioneiros, apesar da manutenção das taxas de homicídio na faixa dos 8 a 10 por 100.000 habitantes entre 1975 e 1995.

A tolerância zero, assim como o aumento brutal da taxa de encarceramento e os investimentos no sistema prisional, seria resultado de uma certa visão de sociedade:

“Our spectacular investment in punishment isn’t an isolated development but part of a larger vision of society - a vision we have been pursuing in the United States, with only modest deviations, for more than a quarter century. America’s punitive and reactive response to crime is an integral part of the new social Darwinism, the criminal-justice counterpart of an increasingly harsh attack on living standards and social supports, especially for the poor, often justified in the name of ‘personal responsibility’ and the ‘free market’.”

E o mesmo autor arremata de forma lapidar:

“Our growing reliance on incarceration helps us avoid confronting a host of deep and stubborn social problems: continuing joblessness in the inner cities, persistent child poverty, the virtual collapse of preventive public-health and mental-health care, the paucity of effective drug treatment and adequate schooling for the children of the poor, the absence of the kind of supportive family policies that virtually every other advanced nation maintains.”

Para quem porventura considerar exagero vincular os investimentos em encarceramento e punição com o desmantelamento de esquemas de seguridade social e políticas distributivas, é só olhar para as iniciativas recentes do prefeito Giuliani. Os sem-teto nova-iorquinos são recolhidos para abrigos da Prefeitura e obrigados a trabalhar em troca de salários módicos. Os que não querem ou não podem trabalhar correm o risco de serem expulsos dos abrigos e, ao permanecerem nas ruas, serem encarcerados, já que dormir nas ruas e praças é ilegal. Esse plano foi questionado na justiça por entidades de defesa dos direitos humanos e se encontra momentaneamente “congelado”.

De qualquer maneira, a substituição do “welfare” pelo “workfare” representa a recusa de se investir em esquemas de seguridade social em nome da responsabilidade individual. Os indivíduos excluídos teriam deixado de ser funcionais para a economia capitalista, tornando-se inclusive obstáculo ao bom funcionamento dos negócios e do turismo. A lógica de recolher os mendigos para abrigos localizados longe das áreas mais valorizadas e freqüentadas por turistas se explica nesse contexto. Quando o recolhimento para o abrigo ou o trabalho sem perspectiva dos esquemas de “workfare” não funcionam, entra em cena a tolerância zero para enquadrar os recalcitrantes, a horda de disfuncionais que precisam ser punidos não tanto como “exemplo” para dissuadir potenciais criminosos, mas porque a função da pena se esgota na punição enquanto neutralização e exclusão.

5. À Guisa de Conclusão: o significado da “Tolerância Zero”

De acordo com Zygmunt Bauman, a transição da sociedade industrial moderna para a sociedade de consumo atual representou uma série de transformações simultâneas: o fim do emprego tradicional, que proporcionava segurança e estabilidade, diminuiu o espaço da vida vivida como um projeto de planejamento de longo prazo, enquanto o Estado de bem-estar, concebido como instrumento para reabilitar os temporariamente inaptos, perde razão de ser à medida que um crescente setor da população nunca reingressará na produção. Dessa forma, a transição para a pós-modernidade nos campos da economia e do Estado representa o ingresso em uma época na qual a tarefa de lidar com os riscos coletivamente produzidos foi privatizada.

Em outras palavras, ocorreu uma privatização da responsabilidade pela situação humana: o auto-engrandecimento toma o lugar do aperfeiçoamento socialmente patrocinado e a auto-afirmação substitui a responsabilidade coletiva pela exclusão de classe.

“Dada a natureza do jogo agora disputado, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado com meio coletivos, só podem ser redefinidos como um crime individual. As ‘classes perigosas’ são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições do bem-estar.”

Os “excluídos do jogo”, como ressalta o autor, são os consumidores falhos, aqueles cujos meios não estão à altura de seus desejos de consumo. São esses que encarnam “os demônio interiores” da sociedade de consumo, sendo seu isolamento em guetos e sua incriminação uma forma de exorcismo. Os excluídos são considerados culpados pelo seu malogro e passam a constituir uma ameaça àqueles que estão devidamente inseridos na sociedade de consumo, daí a histeria e a obsessão com a lei e a ordem que se abatem sobre os setores bem-sucedidos. É claro que nos tempos modernos, as classes baixas eram visadas como objeto de vigilância e controle, mas a diferença fundamental reside na antiga preocupação em “recuperar”, “reeducar”, “normalizar” os desviantes.

A sociedade panóptica tal como identificada por Foucault tinha a intenção de controlar e dominar com o intuito de tornar os “anormais” funcionais para a sociedade. O que Bauman ressalta, na mesma linha de Loïc Wacquant, é o fim dessa preocupação ou responsabilidade coletiva e, por conseguinte, a transformação do controle em pura e simples exclusão da convivência social. O exemplo mais evidente dessa tendência, nos países centrais, é o aumento crescente das taxas de encarceramento e a explosão dos gastos com o sistema de justiça penal (polícia e prisões) ao mesmo tempo em que as despesas com as instituição de bem-estar (educação, previdência social, saúde, etc.) são cortadas drasticamente.

“O que sugere a acentuada aceleração da punição através do encarceramento (...) é que há novos e amplos setores da população visados por uma razão ou outra como um ameaça à ordem social e que sua expulsão forçada do intercâmbio social através da prisão é vista como um método eficiente de neutralizar a ameaça ou acalmar a ansiedade pública provocada por essa ameaça.”

O Brasil parece seguir essa mesma tendência de progressiva redução do Estado a suas funções policiais e carcerárias. O problema maior, no entanto, é que o Estado de bem-estar nunca se universalizou no Brasil, de modo que seu desmantelamento deve gerar uma precarização ainda mais intensa do que aquela observada dos países desenvolvidos. Além disso, sabe-se que países como os EUA, por exemplo, têm capacidade financeira para sustentar o crescente encarceramento de sua população excluída, ao passo que o Brasil não possui recursos para financiar a construção de presídios na escala pretendida.

A situação atual de superlotação dos presídios brasileiros se conjuga com a “bola de neve” dos mandados de prisão não cumpridos, gerando uma sensação de que o Estado jamais poderá desempenhar a contento nem mesmo sua função penal. Essa é uma razão adicional utilizada para justificar o tipo de exclusão levada a cabo pelas forças de segurança no Brasil, que assumiria conotações mais violentas, tendo em vista que o indivíduo preso é considerado um fardo pesado demais para a sociedade. É claro que essa explicação funcionalista pode ser importante, mas é insuficiente se não for acompanhada de uma reflexão histórico-estrutural cujo alcance certamente transcenderia os limites deste ensaio.

A política de segurança pública do “Estado Penal” é a “tolerância zero”. Ao reduzir a questão da segurança pública a um problema de déficit de polícia e, por conseqüência, de déficit de punição e de encarceramento, essa perspectiva procura dar uma solução que tende apenas a aumentar o contigente de presos, sem efeitos significativos sobre o índice de criminalidade. Na verdade, esse tipo de política de segurança parece se encaixar perfeitamente no atual contexto político de desmonte do Estado de bem-estar, de modo a transformá-lo num Estado puramente penal, destinado a “cuidar” da parcela da população considerada “desajustada”, incapaz de inserir-se na sociedade de consumo.

No que concerne ao caso brasileiro, o discurso daqueles que justificam a violência policial com base na necessidade de eliminação do “mal” pede simplesmente mais polícia para combater o crime. O problema da violência ilegal não chega a ser posto, visto que a verdadeira questão é a guerra ao crime e aos criminosos, sem piedade nem compaixão. Trata-se de punir os criminosos e coibir potenciais delinqüentes com mais polícia nas ruas, o que significa mais confronto e administração sumária da “justiça”. As vicissitudes da segurança pública são reduzidas a uma questão de déficit de polícia e de vigilância, ou seja, o que se espera é uma política que se traduza em mais rondas policiais e uma pré-disposição para abordar e agir sem meios-termos diante dos suspeitos, que são aqueles que trazem no corpo, na cor da pele, e nas vestimentas, as marcas da exclusão da sociedade de consumo.

O discurso oficial tende a adotar a tolerância zero em termos semelhantes aos utilizados nos países centrais, mas a prática cotidiana da polícia tende a interpretar as palavras duras dos líderes políticos como a licença para aniquilar, se necessário for, os novos “inimigos internos”. O sucesso da tolerância zero entre os políticos brasileiros e o público em geral pode ser explicado por uma coincidência de visões de mundo. O individualismo exacerbado que sustenta a tolerância zero encontra um ambiente acolhedor no Brasil. A retórica da guerra contra o crime e as classes “criminosas” propiciada pela tolerância zero já vinha sendo aplicada na prática no Brasil, por meio da violência policial ilegal. O discurso que vem do Norte, contudo, possibilita inserir as práticas tupiniquins numa espécie de “mainstream” internacional, ou melhor, revestir a velha arbitrariedade policial de um novo discurso dotado de credibilidade e reconhecimento mundial.

Não é a tolerância zero que passa a ser aplicada no Brasil como uma estratégia inovadora. Trata-se de um processo sutil de dar novas roupagens a algo que já vem sendo feito há muito tempo. Não se deve esperar grandes mudanças além da retórica e de pequenos ajustes na gestão das polícias brasileiras. A tolerância zero servirá, na verdade, como arma adicional na defesa de políticas de segurança públicas voltadas exclusivamente para a repressão dirigida aos alvos tradicionais. A tolerância zero reforça estereótipos correntes na sociedade brasileira, posto que reduz a questão da segurança pública a um problema de polícia. As idéias contidas no programa tolerância zero ajudam a reproduzir, dessa forma, a configuração de relações sociais excludentes e autoritárias que estão enraizadas na sociedade brasileira.

A nova estratificação promovida pelo capitalismo em tempos de globalização produz exclusão sistemática e, em última instância, reduz o espaço público, dissolvendo o cidadão em mero consumidor. Nesse sentido, o Brasil coincide com os países centrais, apesar das trajetórias históricas e estruturais distintas. Para retomar Bourdieu, citado na introdução, dir-se-ia que há uma coincidência entre as estruturas cognitivas daqueles que refletem sobre segurança pública e as estruturas objetivas das relações sociais autoritárias em que ser pobre, negro e favelado equivale à condição automática de suspeito. A hegemonia da ideologia liberal da responsabilidade individual, do “self-made man”, do cidadão consumidor, do utilitarismo extremo, são características comuns que unem o Brasil de hoje aos países centrais.

Mas se há exclusão nos EUA e no Brasil, se a tolerância zero tanto lá quanto aqui é uma forma de levar adiante a o darwinismo social, devemos concluir que o resultado final das políticas de segurança pública terão efeito equivalente em ambos países? As passeatas e protestos contra a política de Giuliani em Nova York podem revelar uma diferença importante: o grau de organização das vítimas preferenciais e seu poder de mobilização são altos. Além disso, apesar de todas arbitrariedades cometidas em Nova York, os números de mortes produzidas em confrontos pelas polícias de São Paulo e Rio de Janeiro fariam qualquer Rudolph Giuliani ruborizar. As relações sociais em Nova York, não obstante as tensões raciais e o processo de exclusão acarretado pela nova economia, parecem em grande medida basear-se na crença de que o ideal constitucional da “igualdade perante a lei” pode realizar-se, ainda que imperfeitamente.

O Brasil, por seu turno, possui características de uma sociedade relacional, para usar expressão de Roberto DaMatta. A igualdade perante a lei faz sentido para uma parcela reduzida da sociedade, a porção “respeitável” que foi capaz de tecer as relações e os vínculos corretos. O ideal da igualdade perante a lei parece aqui muito mais distante, quase uma quimera de efeitos práticos reduzidos. Dessa forma, o discurso da tolerância zero daria apenas uma aparência de novo a uma prática antiga de reproduzir, no policiamento cotidiano, a relações sociais hierárquicas. Ajudaria a superar eventuais dramas de consciência, pois a toda culpa é transferida ao indivíduo moralmente doente, esse ser “diferente”, irremediavelmente perdido, esse cancro social que deve ser extirpado para que se possa realizar o ideal autoritário de uma sociedade homogênea, harmoniosa e desprovida de conflitos.

Referências Bibliográficas

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